Um personagem de romance esquecido
Das nossas aventuras pelo império sobrou pouco. Felizmente,
o velho Doutor Homem, meu pai, impediu o tio Henrique (que peregrinou por
Angola, Moçambique e passou uma temporada na Índia) de compor uma obra
sinfónica sobre o tema, convencendo-o a melhorar a sua perícia do oboé apenas
num raio confinado à sua casa nos arredores dos Arcos de Valdevez, onde os seus
antepassados se tinham dedicado a envelhecer felizes sem grandes preocupações
musicais.
De resto, os sertões de África nunca mais inspiraram
qualquer outro talento dos Homem; e, tirando uma ou outra recordação das
colónias, como uma mesa de pau preto ou a malária do tio Henrique, a nossa
ligação ao império manteve-se durante anos apenas graças ao caril servido
periodicamente a pedido de Dona Elaine, que, não sabendo distinguir Goa de
Nagar Aveli, ainda ouviu mencionar vagamente o Estado Português da Índia.
Os despojos do tio Henrique, valha a verdade, eram dignos de
um romancista; limitaram-se a uma maleta de couro antiga onde cabiam uma dúzia
de camisas brancas e imaculadas, feitas por medida no alfaiate Edward Loureiro
& Sons, Goa; uma navalha de barbear com cabo de marfim; um horário de
comboios africanos (‘East African Railways & Ship Lines’) que por certo
nunca lhe foi de grande utilidade; dois baralhos de cartas; um pequeno manual
de contabilidade doméstica publicado nos anos trinta pela Livraria Arnado; e um
cachimbo demasiado grande para ser levado a sério.
Estes bens, dispersos e irrelevantes, foram guardados pelo
seu irmão, o meu bom tio Alberto, bibliófilo e gastrónomo de São Pedro de
Arcos, e depois da morte deste confiados ao casarão de Ponte de Lima, onde
repousam no meio de velharias que o tempo há-de devorar.
Tenho pelo tio Henrique uma admiração vaga, que nunca deixou
de ser adolescente nem romântica. Imagino-o na varanda da sua casa dos Arcos de
Valdevez, atormentado pelas doenças que trouxe do Índico, sonhando ser um
coronel inglês das Índias retirado para escrever as suas memórias. Nem a idade,
nem o mal de Parkinson, nem as gripes constantes lho permitiriam. Por vezes,
naquela tranquilidade das montanhas do Minho, devia ouvir, sempre e apenas na
sua cabeça, os acordes triunfais da sua sinfonia sobre as campanhas do Ultramar.
Mas o resto da família não mostrava grande compreensão, tirando o tio Alberto,
que fez do seu irmão mais velho um personagem de romance. Mas esse romance
teria de ser escrito noutra língua e noutro lugar. Ninguém imagina que
tivéssemos sido heróis em algum lugar.
in Domingo - Correio da Manhã - 29 Julho 2012