domingo, novembro 27, 2011

O Outono não pertence a nenhum lugar

Periodicamente, como um pêndulo irregular (porque o temperamento dos humanos não tem a precisão da vulgaridade), Dona Elaine preocupa-se. O problema, diz a governanta do eremitério de Moledo, é o Outono, com a sua indecisão meteorológica, os caprichos do clima, as primeiras tempestades que fustigam a Ínsua e escondem Santa Tecla, as cordas de água que fazem da foz do Minho um retrato sombrio de Turner. Dona Elaine não conhece Turner e sobre a “indecisão meteorológica” limita-se a condensar a sabedoria de uma minhota dos arredores de Cerveira. Mas é o suficiente para se iniciar na carreira de psicóloga, observando que – diz ela – começo “a cismar”. A relação entre a crueza do tempo e os baixos níveis de entusiasmo parece-lhe um dogma assente em decénios de experiência.

Há quem atribua ao Outono uma gran­de percentagem de razões para “começar a cismar”, como se nos desfolhássemos com os plátanos e as videiras das colinas. Pessoalmente, limito-me a agasalhar-me, atitude que me tem pro­tegido bastante dos resfriados e da ameaça do reumatismo sazo­nal. Esta indiferença há-de parecer relativamente arrogante. A minha sobrinha Maria Luísa perguntou-me se eu penso na morte. "Não cos­tumo cismar", respondi na altura. Penso apenas em gente como eu, na curva dos noventa, caminhando pelo paredão diante do mar, dobrando as articulações e usando chapéu e gabardina para se proteger do ar de Novembro; e penso que a idade de cismar passou numa das várias adolescências a que nos entregámos de alma e coração, no meio de uma paixão ou na falta dela.

Os poetas de antanho supunham essa relação entre o Outono e a melancolia, ignorando que um bom agasalho seria suficiente para morigerar ou a baixa de tensão arterial ou a vontade de ficar em casa. Por mim, a melancolia é um artifício dos finais de tarde de Verão, com a sua ameaça de felicidade interrompida, que lembra o maravilhamento de outros tempos.

Os sábados de Moledo são muito dados ao temperamento peripatético; há uma certa frieza dos pinhais que o Outono agra­va e amplia. As discussões sobre o temperamento não ultrapassam esse limite para não ferir a paisagem ou enegrecer o crepúsculo – à excepção de Dona Elaine. Ela insiste e teima em que a meteorologia nos condiciona em definitivo e faz comparações com a ameaça de felicidade que despontará daí a alguns meses, com a floração dos hibiscos ou os primeiros botões de roseiras de Santa Teresinha. Os hibiscos são de Moledo; as roseiras, em trepadeira, pertencem à minha memória de Ponte de Lima. Dona Elaine julga que já não pertenço a nenhum dos lugares.

in Domingo - Correio da Manhã - 27 Novembro 2011

domingo, novembro 20, 2011

Álbuns de retratos, o paraíso de um conservador

A minha sobrinha Maria Luísa surpreende-se frequentemente com os álbuns de família, uma velharia que só visito por dedicação ou como um guia de museu. Desta vez, comentou a roupa da família, a compostura das poses com que os grupos se deixavam fotografar, os retratos formais, certa rigidez com que a posteridade os fixou. Os retratos da Tia Benedita foram sempre requisitados para falar da família; havia no olhar da matriarca dos Homem uma bravura indefinida, qualquer coisa que confundiu sempre os que a recordam como a “ultramontana de Ponte de Lima” e que lhe exigiam uma dureza que nunca exibiu. A bravura do olhar não escondia uma certa docilidade, e a docilidade nunca escondeu a determinação da indiferença com que acolhia as novidades do mundo, uma coisa que dispensava e a arreliava.

A idade é um assunto banal. A partir de determinada altura deixamos de compreender o mundo e o facto devia tranquilizar-nos. Compreendemo-lo até certa altura; depois, ou nos comove ou nos deixa zangados; passa a ser indiferente mais tarde, quando o corpo exige mais cuidados e se compreende que as coisas do mundo decorrem perfeitamente sem a nossa intervenção ou sem o nosso horror. O velho Doutor Homem, meu pai, pedia que deixassem a Tia Benedita em paz; o seu mundo terminara há muito, os seus receios eram infundados, a sua vida não incomodava o curso das coisas nem a forma como “as novas gerações” escolhiam a maneira de vestir, de escolher uma profissão ou de destruir um amor.

Não sinto nenhuma amargura ao ver como o tempo passou sobre esses álbuns de família. Comovem-me os anos que passaram em vão, quase tanto como os momentos de felicidade vividos há quarenta, cinquenta, sessenta anos, e que são apenas uma ténue corrente de ar que percorre a casa e a deixa – também ela – indiferente. Essas fotografias deixam-me reconfortado. Numa delas, Dona Ester, minha mãe, está sentada sobre um muro diante de uma praia (os meus pais conheceram-se em Biarritz) – a mesma onde, nos anos vinte, o velho Doutor Homem, meu pai, a pediu em casamento. Penso que nessa época a vida era mais fácil. Mais medíocre, sim; mas mais fácil. O tempo da penicilina ainda não chegara e o ‘glamour’ do mundo tinha perecido com o Titanic, com a guerra e com o ódio que atravessara a I República.

Explico a Maria Luísa que se é conservador por motivos banais. Às vezes, apenas por sermos delicados e respeitosos para com a passagem do tempo. Por sentirmos uma grande nostalgia das ruínas perfeitas, dos bosques de outrora e de uma ordem que já não vive entre nós.

in Domingo - Correio da Manhã - 20 Novembro 2011

domingo, novembro 13, 2011

O que perdemos com o campo de outrora

O velho Doutor Homem, meu pai, ameaçava frequentemente desertar da cidade e vir viver para o Minho – aquele Minho de outrora, bucólico e incompleto, onde nunca se deu verdadeiramente bem, precisamente por lhe faltar a cidade. A cidade desses tempos (anos cinquenta, sessenta) também não era a cidade que hoje ameaça invadir todos os recantos com o seu ruído, a sua civilização e as suas vantagens; era uma soma de bairros a que o tempo emprestou elegância e a melancolia concede uma aura de bondade. O campo, confesso, era triste e pobre – verdejante, cheio de pastos, de estradas estreitas e onde os carros de então circulavam por vaidade e coragem. O meu Tio Alberto rompeu com esse mundo de camponeses pobres do tempo do dr. Salazar – e julgou, por algum tempo, viver numa espécie de condado britânico com ‘landlords’ civilizados e presbíteros cultos, desejosos de discutir a última guerra peninsular enquanto esperavam a chegada de um carteiro educado e destemido o suficiente para resistir às meteorologias locais. Esse campo nunca existiu. Tivemos oportunidades, sim, mas nunca existiu. O país nunca compreendeu o seu verdadeiro ressentimento contra um mundo pobre e desajustado onde tudo chegava com dificuldade – desde a assistência médica ao sinal de televisão – e de onde se fugia para ‘melhores condições de vida’, que raramente se verificavam nos bairros pobres das cidades. Hoje é tarde: desabituámo-nos da simplicidade e os gostos das novas gerações pouco coincidem com os limites das montanhas e da agricultura que desapareceu em grande parte das províncias.

O ideal de campo do velho Doutor Homem, meu pai, era demasiado britânico, e em Portugal só aparecia nos romances de Mrs. Trollope, em bibliotecas arruinadas pela idade e nunca traduzidos – porque seriam incompreensíveis. A minha sobrinha Maria Luísa gosta do campo – a uma distância relativa que lhe permita manter-se imune. Por mais difícil que seja a vida nas cidades, não lhe passa regressar (como os antepassados de outro regime, cordatos e terratenentes) para cultivar as hortas ou dedicar-se – como agora é comum – ‘à agricultura biológica’. Compreendo-a, mas não vejo óbice à altura. A cidade deixou de ser uma garantia do paraíso terrestre, munida de todos os acessos ao bem-estar; Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, ainda acha que para lá de Viana existe um mundo como aparece nas telenovelas a que assiste com determinação, aborrecido e soturno. Mal se aproxima o Inverno, sonha com as mimosas na estrada de Caminha. Parece uma citadina.

in Domingo - Correio da Manhã - 13 Novembro 2011

domingo, novembro 06, 2011

A revisão da história e um pouco de misantropia

O mundo não está mais estranho do que há oitenta anos, quando eu aprendia a declinar, de acordo com os livros a época, os momentos essenciais da História Pátria. Os vencedores da História eram, com poucas excepções, os mesmos de hoje. Uma parte da família sentia-se indignada com o deslize de considerar a convenção de Évora Monte o momento essencial do século XIX, a par da inauguração dos caminhos de ferro – mas a maior parte seguia em frente e não se dava ao trabalho de tentar fazer o que, para o Tio Henrique, seria “repor alguma verdade” sobre os factos, embora a generalidade dos Homem insista em designar por Concessão de Évora Monte aquilo que passou à posteridade como Convenção.

Acontece que o Tio Henrique, além de herói militar praticamente desconhecido de algumas campanhas de África – onde se notabilizou na arma de engenharia –, era sobretudo o autor de todos os ditirambos conhecidos na minha infância e adolescência. Falava por advérbios e adjectivos a propósito das coisas mais simples e a sua retórica aproximava-se bastante da dos vates do constitucionalismo, com cuja gramática fora criado. A família prezava-o muito mas passava adiante, receando uma recaída no único musicólogo da casa, recordando como já fora difícil convencê-lo da inutilidade de compor uma obra sinfónica sobre a epopeia africana dos portugueses do século a que pertencia, o XIX.

Oitenta anos depois, a questão de pertencer ao lado certo ou ao lado errado da História ainda se coloca com alguma veemência. Com o tempo, habituei-me a pertencer ao lado minoritário, aquele que foi condenado à derrota desde a partida do Senhor Dom Miguel para Génova. A minha sobrinha Maria Luísa, a esquerdista da família, acha que já é tempo de fazer as pazes com o país. Eu tento responder que a conciliação entre a Pátria e este grupo de minhotos que apreciam genealogia e botânica já foi preparada e executada há bastante tempo. Pessoalmente, dou o assunto como encerrado. Os portugueses de hoje ignoram a História, acreditam na existência de um paraíso particular cheio de auto-estradas e telemóveis, e desconfiam de toda e qualquer espécie de pessimismo. Com isto não conquistaram a felicidade, mas endividaram-se com aplicação e método e, em geral, passam com dificuldade pelas crises que não compreendem. O velho Doutor Homem, meu pai, assegurava que os portugueses são capazes de passar uma vida inteira a viver a vida que lhes não pertence, só pelo receio de encararem a sua imagem ao espelho. Pode ser; há um pouco de misantropia na sua pregação, mas o essencial é isso.

in Domingo - Correio da Manhã - 6 Novembro 2011