sábado, janeiro 27, 2007

A 'haute saison'

Os domingos de Moledo, durante o Inverno, não mostram nem uma pequena parte da grandiosidade da 'haute saison'. Houve um período áureo de Moledo – quando a província existia e existiam hábitos. Era a "saison", o Verão, a época balnear, os encontros sazonais diante da pequena amostra de beleza local – o cume de Santa Tecla e a ínsua de um lado, o areal que prolonga a praia de outro. Em boa medida, eram estes os pontos cardeais de Moledo quando o Verão se aproximava. Ou seja, valha a verdade, quando se aproximava a 'haute saison'.

A minha sobrinha acha isto ignóbil e 'snob', mas o uso da expres­são justifica-se uma vez por outra. Ela também me acha um anti-romântico impenitente e sem remissão, que há-de cruzar as por­tas do Além à procura de um motivo de sarcasmo. Expliquei, à minha maneira, que existe uma elevadíssima arte
- a da ironia. A minha vaidade é bastante para saber que existe; mas um resto de bom senso impede-me de julgá-la entre as minhas aptidões. Maria Luísa vê as coisas de outro modo e atribui à ironia (bem como ao sarcasmo, que é uma coisa inteiramente diferente) defeitos incomensuráveis próprios das classes que, na sua irresponsabilidade social, não foram morigeradas pelos sentimentos mais pios ou misericordiosos. Ora, o humor é um bem inestimável num mundo agreste e aborrecido por diversos males – desde os naturais (entre eles incluo os problemas das coroná­rias, o reumatismo ou o Alzheimer) aos que se criam para tornar a nossa vida uma espécie de purgatório ou, à falta de conhecimen­tos teológicos, uma antecâmara do sofrimento eterno.

Ironia e humor são elementos fundamentais da arte de viver; valem-nos na tristeza e afastam-nos do crepúsculo de Inverno. Com a idade e, portanto, com a proximidade do fim, habituei-me a desejar o Verão ou a doce melancolia da nossa Primavera minhota – mais do que a aceitar a inevítabilidade do Inverno. Devia ser ao contrário; mas não é. Em vez de ter aprendido a conformar-me, explicando a mim mesmo que o Inverno se prolonga pelos meses da ordem, "fico a cismar" (a expressão é de dona Elaine, a governanta de Moledo) na chegada do Verão e da 'haute saison'.

Para não contrariar os desígnios da natureza, contento-me em observar que o frio tem algumas vantagens para a saúde, para o restabelecimento das ervas do jardim e até para a vida familiar. O argumento convence-me, como é de esperar numa alma con­servadora, mas os domingos de Inverno continuam a não mos­trar nem uma parte da grandiosidade dos fins-de-semana esti­vais. Nas ruas de Moledo podaram e cortaram as ramagens dos plátanos e de duas buganvílias que também hibernaram. Uma poeira de frio cobre os trilhos das dunas onde já houve garças. Há uma nudez que comove os poetas e entristece os velhos, a quem o tempo não mostra piedade.

Portanto, nada a fazer, por mais que me declare vencido pelos elementos, pelo clima e pela ordem das coisas. Já expliquei ao leitor que, chegado a esta idade, tendo dobrado os oitenta, a promessa essencial da minha vida consiste em ultrapassar cada estação do ano, sobrevivendo como puder. "O tio devia ir até às Caraíbas", sugeriu um dos meus sobrinhos (que agora é arquitecto, como já contei) depois de escutar esta arenga. "Os trópicos fazem bem a toda a gente." A ideia de ver um matusalém minhoto partir, a meio do Inverno europeu, para os paraísos equato­riais – se fosse possível – seria uma das imagens que divertiria a família para o resto da sua história, embora tivesse a vantagem de talvez fazer ressuscitar a tia Benedita, arrancando-a do Além com tamanho choque.

Os Homem pertencem a este Inverno miúdo de província, quase temperado – mas nada os impede de protestar, como é a sua natureza. Temos a nostalgia da 'haute saison' (e também isso é da nossa natureza), de um certo esplendor da vida, de um resto de glória. O Inverno, às vezes, é apenas um obstáculo. Delicioso e inevitável, mas um obstáculo.

O velho doutor Homem, meu pai, usava um boné irlandês durante o Inverno. Explicava que para tudo, desde um requerimento nos tribunais até à travessia do Inverno, é necessário algum estilo.

in Revista Notícias Sábado – 27 Janeiro 2007

sábado, janeiro 20, 2007

Amores impossíveis

O ramo ultramontano dos Homem esteve sempre agasta­do com o derradeiro rei português, mesmo quando este foi obrigado pelas circunstâncias a apoiar um Paiva Couceiro nitidamente alhea­do da realidade. Quando os esfarrapados – e esfomeados – do caudilho entraram em Vinhais, julgando que a República ia cair diante da sua marcha, dois primos dos arredores enviaram-lhe fruta, dinhei­ro, dois presuntos e creio que um almude de vinho (que era mau), mas advertiram o antigo capitão do reino e africanista de que o povo agora era republicano de raiz, como antes dera vivas a liberais e a legítimistas ou correra a festejar o hino da Carta. Um ano depois, Couceiro talvez recordasse o aviso quando a incursão de Chaves foi desbaratada por meia dúzia de militares e um grupo dos chamados “voluntários”, conhecidos por perseguirem padres e obrigarem as burguesias e os funcionários municipais a dar vivas à República.

Os Homem nunca ficaram convencidos; mas os peregrinos de Ponte de Lima, onde entravam para venerar o retrato do senhor D. Miguel, sempre tinham avisado que o último rei estava em Londres a tratar da vida enquanto os patriotas gemiam como o Zeferino das Lamelas da 'Brasileira de Prazins', suspirando pelo regresso do monarca mais do que de amores contrariados. Os Homem, vale a pena dizer, viviam com desprendimento geral; mantinham as suas convicções mas sabiam que a vida corria depressa, que um ano vem depois do outro e que o "bem bom" é coisa de dois instantes – um para começar, outro por acabar.

Este pragmatismo não é inocente. A minha sobrinha Maria Luísa desconhecia as aventuras cosmopolitas dos Homem dessa época, julgando que só depois dos anos sessenta se tinham aberto as fron­teiras para que fôssemos além de Valença ou de Vilar Formoso. O velho doutor Homem, meu pai, habituou-nos a viajar no banco de trás de um vetustíssimo Plymouth e a entrar em hotéis para que apreciássemos o mundo na altura em que havia charme para mal­baratar. Fugindo de Biarritz, que teve uma época de dependência da Foz do Douro, atravessámos os Pirinéus para ver como se vestia a civilização; vestia-se confortavelmente, era educada, rica e vivia no desperdício.

Ela, que vive em Braga (comparando com Moledo, é como se vivesse no centro da civilização), ficou espantada com a revelação, nesta página, dos amores do tio Alfredo para lá da Cortina de Ferro quando ainda não havia Cortina de Ferro, às margens do mar Negro, num período em que conheceu a Pérsia, o Cáspio e o gelo das estepes. Da senhora, uma jovem que tinha mais de parisien­se do que de russa – diz-se que os seus primos, cossacos ricos, desapareceram com o vendaval do comunismo –, conserva-se uma fotografia nos anais da família, mais como testemunho do expansionismo sentimental dos Homem do que como prova de uma intimidade que não chegou a existir entre a família minhota e os representantes do Cáucaso.

Nessa altura, o tio Alfredo entrava nos quarenta anos e vivia de negócios. Viver de negócios signi­ficava sempre um certo anonimato nos anais familiares. A expressão "viver de negócios" nunca foi mal olhada pelos Homem, que sabiam o preço das coisas e não foram tidos nem achados nos baro­natos do constitucionalismo nem nas recompensas de antes do cartismo. O velho doutor Homem, meu pai, seguiu uma das tradições da família, dedicando-se às leis, mas, aprovei­tando uma sugestão do tio Alfredo, conheceu as atribulações do direito bancário.

Seja como for, a senhora, que a tia Benedita tratava por Esbelta (nunca conseguiu pronunciar qualquer palavra noutro idioma), mas cujo nome de baptismo era Svetlana, transportou para a família uma beleza oriental surpreendente, que contribuiu para a crença — vulgar na época – de que as mulheres mais bonitas eram inacessíveis, até por motivos geográficos. Svetlana, que nunca esteve em Portugal, nem por isso deixou de ser esquecida nas orações da tia Benedita, que rezava pela conversão da Rússia – e para quem a leste de Roma só existiam barbárie e labaredas vindas do inferno. Ela nunca foi sensível à beleza das outras mulheres, um atributo que achava pouco útil nas minúcias do seu catecismo. Por isso, tinha muita pena do capitão Paiva Couceiro, sonhador, hirto e ingénuo no seu uniforme coçado. Ele era muito amado pelas mulheres. Mas a tia Benedita era um caso à parte.

in Revista Notícias Sábado – 20 Janeiro 2007

sábado, janeiro 13, 2007

Biografia de um cronista atrasado no envio

Já lá vai o tempo que dona Elaine partia para a estação de correios de Moledo com as cinco folhas de papel branco destina­das ao fax. A minha sobrinha Maria Luísa insistia para que insta­lasse um computador na biblioteca e poupasse, em Lisboa, o tra­balho de decifrar a letra do candidato a cronista, desenhada com a 'Parker' que pertencera ao velho doutor Homem, meu pai, e que herdei como um vício e uma recordação. O tempo passou sobre esse dia em que ameacei a vaidade dos meus antepassados com uma vaidade ainda maior, a de escrever parte das minhas memó­rias.

Um velho apenas tem memórias – a sua visão do futuro é um repositório de prováveis acontecimentos do passado, nem sem­pre confirmados. Desde então, a 'Parker' não foi ainda substituí­da. Ocasionalmente, à segunda-feira pela tarde, D. Vera telefona da revista perguntando pelo clima de Moledo, tentando não dar a entender-me que estou atrasado no envio; de qualquer modo, reconheço que ela tem um genuíno interesse por Moledo, que acha uma praia geminada com a sua Ericeira – por onde um ante­passado dos Homem partiu de barco na companhia da última família real em direcção ao exílio; no Minho, o facto foi considera­do relativamente honroso, mas amiúde fala-se dele como uma relativa traição, razão por que o retrato do senhor D. Miguel con­tinua pendurado no casarão de Ponte de Lima, tão sombrio como os freixos e choupos que amenizam o jardim abandonado.

Mesmo com as abissais diferenças entre a Ericeira e Moledo (que o nevoeiro comum não ajuda a dissipar), D. Vera termina sempre os nossos diálogos com um "tem de vir à Ericeira" e com a minha promessa de aceitar o convite – ambos sabemos que é impossí­vel: mal ultrapasso as minhas fronteiras (que ao sul se estendem entre a ponte de Viana e a Senhora da Agonia e que ao norte entram por La Guardia e Santa Tecla, mas terminam sempre para lá de Corcubión) sinto-me obrigado a usar passaporte. Não um passaporte real, que identifique uma nacionalidade — mas um papel imaginário que me defende da própria idade.

Quando os avisos de D. Vera não bastam, o dr. Camacho telefo­na então para – ah, se ele soubesse o que é a vaidade! - con­versar, com jovialidade, sobre a crónica anterior, explicando que o seu pai também se recorda de um ou outro pormenor histórico do texto. A maioria dos meus leitores, ao comentar as minhas crónicas, refere sempre os pais e os avós, devolvendo-me ao século XIX; não tenho grande sucesso entre os meus condis­cípulos, essa é a verdade. À guisa de conclusão, o director da revista informa-me de que esteve em Esposende (de uma das vezes enganou-se e mencionou Harare ou Joanesburgo) e infor­ma que o dr. Pombeiro, que recebe, interpreta e clarifica os meus faxes – e que geralmente é o primeiro dos meus leitores –, "está mesmo aqui ao lado e manda cumprimentos". O que significa aquela evidência desastrosa: estou atrasado no envio da crónica e o dr. Pombeiro, na sua imensa delicadeza, treme que nem varas verdes.

Supus, durante algum tempo, que a maior parte dos telefonemas (como já acontecia no tempo da dra. Mónica Bello) se devia a uma hipocondria colectiva, com toda a gente a interes­sar-se pela minha saúde, que, nes­ses anos iniciais da minha biografia como cronista, era apenas assaltada por gripes e horários certos para tomar os comprimidos. Desenganei-me. Havia ali simpatia sincera, que eu agradeço, mas havia sobretudo o essencial da vida de um cronista: o prazo. O prazo é a realidade funda­mental do cronista, escreva ele sobre o que escrever.

A minha sobrinha, que colige as minhas crónicas e que um dia as entregou ao dr. Manuel Alberto Valente para publicação na sua editora (do que mais gostei foi aquele retrato do príncipe na capa), pergunta-me frequentemente sobre que assunto vou eu escrever "esta sema­na". "Até segunda à hora de almoço", respondo invariavelmente. A essa hora, ela está – em Braga — tratando da vida dos ricos; na revista, suponho, um relógio invisível ilumina-se sobre as preocupações do dr. Pombeiro e de D. Vera, alertando-os para "o prazo"; em Moledo cai uma estranha paz depois do fim-de-semana em que uma certa percentagem de população do Porto aparece de visita; e à minha mesa, rodeado de inutilidades, a vaidade manda-me escrever. É isto a vida de um cronista.

in Revista Notícias Sábado – 13 Janeiro 2007

sábado, janeiro 06, 2007

Gostar do velho ano

Na minha juventude, o ano 2000 era uma ilusão pecaminosa; só de invocar o número ficava-se ligeiramente arrogante e desafiador, a um passo da eternidade – ou um pouco deprimido, quando a data era muito longínqua. Havia outras metas: chegar aos cinquenta anos num mundo cheio de tuberculose, sarampo e novos costumes, se bem que a devassidão fosse o menor dos nossos males. Os Homem sempre lidaram bem com o fenómeno.

Agora, que entro em 2007, tenho uma sensação discreta de vergonha; agradeço estar vivo. Ultrapassei as metas que a minha geração desenhou na sua adolescência e nos primeiros anos da maturidade. Vivi revoluções, se bem que, pelo facto de serem portuguesas, nunca ultrapassaram a mediania em matéria de risco, sem massacres nem mortandades entre os dirigentes – apenas contando com o favor habitual das multidões desordenadas. Contornei a maior parte das minhas doenças com cuidados suspeitos e com desinteresse. Não me livrei de muitos dos males de espírito que me atormentaram, mas não os valorizei para que me não pegassem de surpresa. Reuni na minha biblioteca os livros que sempre quis ler antes de entrar em cada Ano Novo assinalado depois dos setenta.

O velho Doutor Homem, meu pai, desdenhava do hábito de sacrificar todas as esperanças no altar do Novo Ano – achava incongruente os festejos e o optimismo, o que aconteceu depois de prestar atenção à forma como, ao longo da história, se foram falsificando e modificando os calendários e a forma de contar o tempo. Depois de ter lido todo o Burke disponível (o que, confesso, o indispôs contra o género humano durante algum tempo, em razão de haver livros benéficos e livros prejudiciais à saúde) voltou-se contra as revoluções e as comemorações das grandes datas históricas. Nada que não esperássemos numa família que guardava o retrato do senhor D. Miguel como uma das suas pequenas relíquias.

Como é habitual, os que vêm a Moledo para a passagem de ano entretêm-se a jogar sueca até ser meia-noite. É, provavelmente, um ritual de misantropia, dado que o jogo se destina a matar o tempo até ser altura de beber o champanhe do primeiro minuto do novo ano – e continua depois da meia-noite para que nos não gastemos em comemorações antecipadas. A sueca e a bisca são duas concessões ao que a minha sobrinha Maria Luísa chama “o espírito minhoto”. Ela saberá porquê. Dia 1 de Janeiro a manhã começa tarde, portanto, excepto para Dona Elaine (que gosta de não atrasar o assado que se tornou habitual nos almoços de família) e para mim, que venho à varanda e desço os três lances de escada até ao jardim mais desorganizado do distrito de Viana do Castelo, para conferir a chegada do novo ano sob uma fina camada de nevoeiro.

O Ano Velho é malquisto de quase toda a gente. Passa-se isso com quase tudo o que leva a palavra “velho” (talvez tirando a “roupa velha”, uma primícia gastronómica que ainda continua a praticar-se). A ideia do Portugal Novo contra o Portugal Velho é uma dessas ocorrências que, com o tempo, acabam por ser ligeiramente desastrosas. A nossa família (e aí tem razão a minha sobrinha) corresponde em quase tudo ao Portugal Velho, frente ao Portugal Novo que está em todo o lado. Nos humedecidos arquivos de Ponte de Lima encontram-se alguns exemplares dessa folha política dos anos trinta do século XIX, o “Portugal Velho”, precisamente. Lê-se correntemente que Évora Monte veio pôr fim ao Portugal Velho e, de repente, substituí-lo pelo Portugal Novo com a assinatura da Convenção. Assim pudesse ter sido, e poupar-se-iam muitas perseguições e injustiças. Mas os caminhos são sempre atribulados e cheios de vítimas. Chegados aqui, o leitor pensa, e bem, que eu não tenho de gastar a página em aulas de História Pátria.

Com o tempo ficámos todos satisfeitos com a ideia de um Portugal Novo, tal como a generalidade das pessoas prefere o Ano Novo ao Ano Velho. Infelizmente para elas, e satisfazendo o meu cepticismo, o Ano Novo não traz uma vida nova mas apenas uma mudança no calendário – quando eu era novo, o champanhe tornava-me a vista mais turva; hoje, é apenas um sabor agradável, mas gosto de recordar ambas as coisas.

in Revista Notícias Sábado – 6 Janeiro 2007