sábado, março 31, 2007

A adolescência de um velho

À medida que o tempo passa, há quem pense que deixo pouco de mim nestas crónicas. Ainda bem. A vaidade natural dos Homem já é um peso considerável, difícil de domar. No essencial, como os meus irmãos gostam de dizer – lembrando-me que sou “demasiado incompleto” – faltou-me uma “adolescência normal”.

No meu tempo de adolescente deveria, portanto, ter-me contentado em permanecer naquele estádio puramente animal, praticando râguebi e vigiando as belas de então, que alegravam o limbo de qualquer jovem candidato a um casamento mediano. Não casei. Não envelheci no meio de ruído nem de alegrias familiares. Não constituí, como diz a Pátria inteira, uma família. Recordo às minhas irmãs, que lamentam a minha condição de celibatário, que tenho uma família. Episodicamente, ela reúne-se no Verão em Ponte de Lima. Semanalmente, parte dela vem debicar ou gabar o talento culinário de Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, oportunidade que aproveitamos para praticar uma das mais luminosas tradições dos Homem, a má-língua entre nós. A família não me falta nem me incomoda – pelo contrário, colho dela os risos de Verão, os entusiasmos, as notícias, certos dramas, a passagem do tempo.

A minha sobrinha Maria Luísa leva-me – todos os anos – na minha peregrinação a Seide, visitando o casarão obsoleto onde Camilo desesperou ao lado de Ana Plácido. Muitas vezes, é por ela que me apercebo de como o mundo mudou (nem sempre no melhor sentido, mas trata-se de um pormenor), de como os apocalípticos não têm razão. Os outros sobrinhos invadem Moledo durante o Verão, apresentam-me namoradas que cumprimento em nome dos antepassados, alimento-os na sala de jantar e na biblioteca, abro-lhes as portas do meu Minho particular, dependurado sobre o mar. Mais do que isso – para uma família – seria exagero.

Sim, eu vivi uma adolescência. Recordo-a apenas vagamente, não porque não a tivesse mas porque não há grande coisa a glorificar de uma idade em que havia borbulhas no rosto, exames de Francês e de Matemática no liceu, e uma vaidade superlativa nos bailes da época. Quando as minhas irmãs – sobretudo – me falam de uma adolescência inexistente, limito-me a estas recordações. Na altura, somos imperfeitos. A maior parte do que se diz e se faz é, então, improcedente para qualquer pessoa normal.

O mundo de hoje valoriza a adolescência exactamente pelos mesmos motivos que me levam a colocá-la no seu lugar, apenas no seu lugar, arrumada entre os livros de Walter Scott e os álbuns das primeiras viagens a Espanha. Não vejo que felicidade possa existir da visão de um pobre ser de quinze ou dezasseis anos, condenado a mudanças genéticas e fisiológicas ou a erros fatais de gosto e de penteado. Não, não é bela a adolescência. Não é coisa que – na maior parte dos casos – valha a pena recordar. Há setenta anos, muito menos.
Começava-se a viver mais tarde. O velho Doutor Homem, meu pai, devia concordar com este ponto de vista: só aos dezassete anos, depois de vestido o primeiro terno mandado fazer no alfaiate dos Clérigos, nos era guardado um lugar à mesa em dia de cerimónia. Confiavam-nos o primeiro cálice de Porto, à sobremesa. Um ou dois anos depois, podíamos vaguear entre as lombadas da biblioteca e escolher um livro – que havia de ser manuseado criticamente antes de o podermos levar para o quarto. Quando fumássemos o primeiro charuto, seria já naquela paz familiar, serena e obtusa, tranquila, diante dos retratos dos avós. Para que queria eu recordar o que vinha antes de ser admitido a esse convívio de cálices, conversas e maledicências?

Sim, havia uma certa nostalgia. Mas, felizmente, fomos habituados a conviver com pessoas pouco românticas, que não valorizavam dramas nem tragédias ou derrotas. Isso impediu-nos de cair na tentação da tristeza ou no abismo das desilusões que a idade adulta se encarregaria de cavar para nossa infelicidade.
Sentado na varanda, recordo a minha primeira – e única – bicicleta. Uma velharia que transitou para os meus irmãos. Foi com ela, pedalando (ao invés dos meus contemporâneos adolescentes, recolhidos em casa com receio das gripes ou recompondo-se de uma bronquite), que aprendi a reconhecer os diferentes aromas do fim de tarde da Foz. É essa a minha imagem da adolescência: uma bicicleta diante do mar, passando, passando veloz.

in Revista Notícias Sábado – 31 Março 2007

sábado, março 24, 2007

O mundo que não é mundo

Olho para as gerações reunidas à mesa de domingo. Os rostos são-me muito familiares e acompanham-me há muitos anos. As minhas irmãs acham, como julgam que acontece em quase tudo relacionado com Moledo, que o jardim está desorgani­zado e "precisa de arranjo" — elas acreditam que devia existir uma geometria especial a dirigir o crescimento dos teixos, dos chorões, dos pinheiros e da magnólia, que sobreviveu à fúria do enxerto outonal. De resto, no jardim cresce um pouco de tudo. A luta de um botânico amador pelo seu território é um suplemento de peripécias no resumo da minha vida.

Das portas da sala de jantar, onde decorrem as reuniões domi­nicais, há um quadro vagamente campestre que se sobrepõe à monotonia do mobiliário do interior da casa, herança de uma família que foi tão conservadora que até os móveis arrastou de geração em geração, preservando, inclusive, a poeira que lhes ficou agarrada.

Os Homem mudaram pouco de casa. O casarão de Ponte de Lima, na sua simplicidade de granito, e sem outro sinal de exube­rância para além da pedra escura manchada de heras e videiras, mantém-se como o emblema da família. Por ali passaram os meus bisavôs, os verões da adolescência e da juventude, a memória da tia Benedita - e a música do velho doutor Homem, meu pai, que pensou em modernizar o vetusto Minho através de um gira-discos comprado numa das suas viagens ao estrangeiro. Periodicamente, a família reúne-se no seu relvado estival, delimitado por freixos muito verdes e despenteados, numa espécie de concerto cam­pestre sem orquestra, venerando a memória dos antepassados. A tradição desses ajuntamentos familiares foi também mantida de geração para geração; o velho doutor Homem, meu pai, atribuía-Ihe, sobretudo, a virtude de impedir que nos esquecêssemos dos rostos dos mais chegados, coisa que acontecia frequentemente, tendo em conta a multiplicação de crianças na família e o famoso "carácter distraído" dos Homem. Nessas ocasiões, dona Ester, minha mãe, tentava evitar que ele, às escondidas, oferecesse moedas de dez tostões aos netos e sobrinhos-netos que arrancas­sem um número razoável de gladíolos. Esta travessura explica-se: os gladíolos eram, para o seu sentido estético, uma planta que não devia ser admitida na categoria das espécies botânicas e que ameaçava poluir o que, em tempos, seriam os canteiros vagamen­te aristocratas do casarão de Ponte de Lima.

A ilusão da velha aristocracia, felizmente, nunca manchou a memória dos Homem, habituados desde cedo a venerar o traba­lho e "a profissão", a levantar-se cedo, a ter contabilista - e a rir-se moderadamente do "antigo regime". Isso é uma coisa; outra, dife­rente, é conseguir alguém livrar-se das recordações que lhe estão coladas à pele. Os Homem nunca o conseguiram, seja por provincianismo ou por misantropia, como se tivéssemos herdado o sobrolho da tia Benedita (vigiando faltas de respeito à tradição miguelista) e, em simultâneo, a erudição do tio Alberto, que mais tarde haveria de se tornar o primeiro membro da famí­lia a enamorar-se de uma princesa vinda das margens do Cáspio.

Na tradição oral da família, que nos anos trinta vivia amedrontada pelo bolchevismo, comenta-se que ela não era princesa de verdade. O tio Alberto não ligou. Ele não queria saber. Agarrado aos seus livros - era um académico de número —, poliglo­ta, botânico, moderadamente considerado jurisconsulto, nem a prudência que herdou da família o impediu de perecer diante do exotismo da paixão. Conserva-se dele, além dos livros (onde, a par de monografias pesadíssimas, há uma colecção completa do The Sportsman' e das obras de Charles Caleb Colton), um retraio envelhecido desses anos. Morreu na casa de S. Pedro de Arcos, no Inverno de 1968, dois anos depois de a sua princesa russa (na verdade, era persa) ter sido sepultada perto de Genebra. O velho doutor Homem, meu pai, perdeu mais do que um irmão; o tio Alberto era um dos últimos aventureiros da família.

Ao ver o jardim desalinhado de Moledo ou ao reparar nas gera­ções reunidas à mesa de domingo, penso que o mundo não é mundo se lhe retirarmos a memória daqueles que o desafiaram e pereceram nesse combate. Perde-se sempre a batalha. Mas vale a pena. Até nisso somos conservadores, nós.

in Revista Notícias Sábado – 24 Março 2007

sábado, março 17, 2007

Elogio do passado

O poeta dizia que Abril era o mês mais cruel. Raramente se devem atribuir aos poetas outras virtudes para lá das que vêm – à vista – na sua poesia, o que nos teria poupado grandes contrariedades e desmentidos. Seja, pois, Abril o mais cruel dos meses, uma vez que não se trata de assunto meteorológico. Compreende-se o receio de T.S. Eliot, que não deve confundir-se com hostilidade. Em nós, os velhos, a Primavera significa uma explosão brutal e escandalosa. Por um lado, desaparecem os horrores de Inverno – e o leitor já sabe do meu desaguisado com a estação da neve e do frio; por outro, a Primavera, digamos, acontece em todo o lado excepto em nós. A minha qualidade de botânico amador lembra-me a explosão de amarelos chocantes pelas estradas do Minho, albergando mimosas, e pelos parques das redondezas, exibindo japoneiras coloridas, ou begónias que ainda têm um jardineiro para cuidá-las.

Na varanda das traseiras, por esta ocasião, despontam as azáleas de rosado profundo e escuro cujos pés trouxe de uma excursão galega há três anos; a minha sobrinha Maria Luísa garante que foi há quatro e essa indecisão faz parte das mais renhidas discussões de família, tirando a que – todos os Verões – leva a que em Ponte de Lima se estabeleça a indecisão sobre o local exacto onde desembarcou a tropa liberal, se no Mindelo (a antiga Praia dos Ladrões) ou na Areosa de Pampelido. Não que o assunto nos mobilize; mas um pouco de rigor histórico nas derrotas de família não faz mal nenhum. Maria Luísa acha que o tema só se justifica quando as pessoas não têm mais nada em que pensar, tendo em conta que a convenção de Évora Monte já foi há muito tempo, que o Remexido nunca mais voltará a derrotar Sá da Bandeira, e que a Tia Benedita – a matriarca da família – já nos não vigia a fidelidade ao Senhor D. Miguel.

Recentemente, num dos almoços de domingo, tive a estultice de achar que José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido, seria um bom tema de romance. Quase toda a família pensa – publicamente – que eu “não tenho dedo para a literatura”, se tirarmos o apego a velharias, à literatura gótica e à poesia inglesa do meu século, às novelas do exilado de Seide e do génio de “Tristram Shandy”, às monografias regionais e à chamada literatura panfletária, que vai de Samuel Johnson a Acúrcio das Neves passando por Burke ou Disraeli. É talvez verdade que dessas leituras só pode resultar um espírito perturbado ou um leitor indisciplinado. Na melhor das hipóteses, apesar de tudo, fabrica-se um carácter manchado pela vaidade, que é aquilo que os livros transmitem com abundância.

Seja como for, o desprezo a que a História votou o Remexido é uma injustiça. Ele é um dos guerreiros da nossa galeria de bandoleiros e lutadores condenados à derrota, depois de ter vencido as suas próprias batalhas contra Sá da Bandeira e Severim de Noronha (duque da Terceira). Fuzilado às escondidas, em Faro, depois de ter sido perdoado pela própria Rainha, José Joaquim de Sousa Reis sucumbiu ao desenho que dele fizeram os vencedores, como ordenam as regras e os princípios. A Tia Benedita, que uma vez por outra regressava ao seu longínquo século para nos surpreender, tinha por ele uma admiração muda desde que soube que o guerrilheiro mandou uns homens a Alvalade, a coberto da noite, recolher uma espada que o Senhor D. Miguel deixara na casa dos seus anfitriões depois de iniciada a viagem para o exílio, que ainda o levaria a Sines no dia seguinte. A matriarca dos Homem, que enviuvara aos quarenta, não sabia de literatura aquilo que um bacharel de hoje adivinha; mas tanto a sua dureza como a repulsa pela democracia (e pela República, que sintetizava todos os defeitos do seu tempo) fizeram dela uma testemunha silenciosa do passado, que venerava sem arrebatamentos e sem ilusões.

Nesta antecâmara da Primavera rendo-lhe homenagem, junto dos botões de azálea na varanda das traseiras. Ela não tinha a sensibilidade das mulheres românticas nem a doçura das avós provincianas. O velho Doutor Homem, meu pai, respeitava-lhe o nome e a memória, e raramente a desculpava pelos seus excessos. Quando a recordo é como se o passado regressasse, nem perfeito nem imperfeito. Apenas como uma penumbra que cobre o início da Primavera.

in Revista Notícias Sábado – 17 Março 2007

sábado, março 10, 2007

As bibliotecas

O mundo – isto tudo – mudou muito nos últimos anos e, por vezes, eu sinto-me um plácido reservatório de antiguidades, ou mesmo de velharias. Há, como se sabe, uma diferença entre as duas coisas. Eu fico entre ambas, creio que pairando, aproveitando a vaidade que a velhice não torna escandalosa mas que o bom senso não recomenda – por não ser boa para a saúde.

Por exemplo, Dona Elaine, a governanta de Moledo, acha que os livros velhos constituem contribuições decisivas para doenças conhecidas (a asma, a sinusite, a rinite e a diminuição da vista) e desconhecidas (como a ignorância, por exemplo, que ainda não adquiriu o estatuto de doença, julgo que por distracção). Alguns livros das minhas estantes foram conservados na biblioteca de família desde a minha juventude. Pensando que determinados livros foram comprados nos anos quarenta e que não são colecções despiciendas nem álbuns de estampas, vejo que há uma diferença entre estes tempos de hoje e aqueles que, por falsa modéstia, chamo “os da minha juventude”. Na altura sabíamos ler, dividir orações, comentar e sermos tementes aos autores. Não a todos, confesso, como basta ver pelo razoável índex que o velho Doutor Homem, meu pai, estabeleceu para uso próprio e que eu, por comodidade e por preguiça (também são coisas diferentes) usei ao longo dos anos. Esse índex era, como todos, injusto. Os seus critérios variavam bastante, oscilando entre o puro juízo estético e a mais injusta das razões – a do “carácter” dos seus autores. O meu avô, que era uma admirador de Guerra Junqueiro, com quem privou no Douro, em Barca d’Alva, foi sempre poupado a esses pormenores – o velho Doutor Homem, meu pai, achava execrável a poesia do autor de “O Melro”, recitando-a com alterações para divertir os serões na velha casa do Porto. Era um juízo, digamos, estético. Com Garrett, que era conhecido paredes dentro como “o Leitão da Silva”, foram perpetradas várias injustiças que nos impediram de apreciar a sua poesia e nos levaram a desconfiar do “Frei Luís de Sousa” – a razão era puramente política, creio eu. Desconfio que isso não toldou definitivamente a nossa vida familiar, que decorreu sem incidentes literários, se bem que não tivéssemos aproveitado uma ou duas passagens superiores das “Viagens na Minha Terra”.

Seja como for, os livros são coisas velhas e o seu proveito é apenas pessoal, egoísta e incomunicável. Não se podem exaltar publicamente, ao almoço de domingo, as observações do Doutor Johnson a propósito da sua peregrinação pelas Hébridas, sem ultrapassar os limites do decoro. Mesmo entre pessoas de família, o assunto requer cuidados.

A minha sobrinha Maria Luísa lê romances modernos e, periodicamente, insiste em que eu os leia. Ora, a coisa mais contemporânea que cataloguei, além dos romances inofensivos e campestres de Mrs. Trollope, são os livros de Dona Agustina. Tento, por isso, lembrar a minha condição de repositório de velharias, a que acrescento o factor oftalmológico que me impede de partir à aventura por entre sintaxes que afligem um leitor do século passado. Eu não apenas pertenço ao século passado como, por defeito, sou um pessimista em relação à literatura. Na verdade, os livros fazem bem e não fazem bem. Por vezes estabeleço com eles uma relação muito semelhante à que mantenho com os medicamentos que o meu médico de Viana do Castelo assegura serem benéficos; uns para dormir, outros para as coronárias, outros para os longos dias de gripe, outros para que as digestões sejam mais tranquilas.

Infelizmente, nesta idade, o efeito de ambos (livros e medicamentos) não é o mesmo de há muitos anos. Mesmo assim, farmácias e bibliotecas são bálsamos neste vale de lágrimas. A expressão faria rir o velho Doutor Homem, meu pai, que era avesso a romantismos e queixas desnecessárias. Tal como assegura Dona Elaine, o mundo não há-de parar por mais que chova em Santa Tecla. Ela tem todos os vícios de uma criadora de provérbios.

in Revista Notícias Sábado – 10 Março 2007

sábado, março 03, 2007

Ser conservador

Os portugueses deviam ser mais conservadores. Geralmente, ouço queixas em sentido contrário – que somos muito conservadores. Não acho. Os portugueses gostam muito de mudar e, pior do que essa vontade absoluta de mudar a todo o custo, é que não sabem a razão das mudanças que aceitam, desejam e defendem.

Este desejo de mudança perpétua é bem capaz de ser sinal de uma fadiga do espírito; à falta de melhor, muda-se, altera-se a decoração da sala ou mudam-se os quadros de família, o que constitui um perigo porque as famílias, em geral, constituem uma herança impossível de trocar.

Pelo contrário o fim de qualquer coisa deixa-me sempre um amargo de boca – os muros que desabam, as casas que se abatem depois de um século consagrado à poeira e à humidade, os livros que se desfazem nas bibliotecas, os velhos que encerram (ai de mim) a sua vida, tudo isso são momentos especiais na minha vida. Há mudanças inevitáveis, evidentemente, mas a mudança não é, necessariamente, um bem. O velho Doutor Homem, meu pai, que era um conservador singular e atípico, nunca deixou de ser leitor de Burke, o autor que o tempo consagrou como “o inimigo da revolução francesa”. Trata-se de uma inverdade: o que Burke deixou escrito foi um aviso sobre os perigos das mudanças radicais e do desejo de salvar o mundo. São coisas que andam a par: mudar o mundo e salvá-lo estão na base de quase todas as crueldades e erros da alma humana, com consequências nefastas para o curso da História. Aliás, a maioria dos grandes heróis das revoluções contemporâneas padecia de desequilíbrios que lhes deviam transformar a vida num inferno – não só achavam o mundo um lugar desadequado como, além disso, concebiam os seus semelhantes como barro a ser moldado pelas esquadrias da perfeição. Como se sabe, essa foi a via mais comum para os desastres que se conhecem.

Frequentemente os portugueses acham que o mundo, ou o país, ou o seu bairro deviam ser “de determinada maneira”, ou mais limpo, ou mais educado, ou mais colorido, ou mais arejado. E, para que os sonhos se realizem, tratam de elaborar leis e de anunciar princípios. O que acontece, com essa mesma frequência, é que a desilusão é cada vez maior porque as leis quase nunca resultam em realização da felicidade na Terra. Confesso que ajudam; mas são um instrumento de que não se deve abusar, precisamente porque as grandes mudanças acontecem com a naturalidade das estações do ano. Exagero talvez; as estações do ano não têm a ver com o assunto. Mas que seja com a naturalidade dos acontecimentos que passam despercebidos.

Criado no respeito pelo passado e por muitos dos seus símbolos, seria natural que eu crescesse conservador. Foi natural, e assim aconteceu. Houve coisas que aceitei do passado como me tinham sido legadas; houve outras que, silenciosa e discretamente, recusei – mas acabei por viver como sempre pretendi, sem incorrer nos quase divinos castigos da Tia Benedita que, aliás, morreu em paz para conforto de todos nós. Mas o que o meu século me ensinou – mostrando-o como uma evidência – foi, sobretudo, que o sofrimento dos homens não acaba e que a maldade não é um defeito da espécie mas, antes, uma das suas características. Ao contrário do filósofo, que pensava que os homens nasciam bons, a minha leviandade e observação levaram-me a pensar exactamente o contrário: o caminho para a inocência é difícil e árduo, e implica muitos sacrifícios e abnegação.

Tanto o comunismo como o fascismo, que foram abominados pela família, previam que nascesse, em algum lugar, um homem novo. Ilusão. O homem é um acontecimento repetitivo e uma velha circunstância da Criação. Nada a fazer a esse respeito, por mais que se inventasse.

Ora, os portugueses, pelo que leio nos jornais e, às vezes, me acontece ver pela televisão, apreciam as mudanças mesmo que elas não sejam necessárias. Os jornais mudam frequentemente, as caras dos telejornais confundem-nos, a gramática do português (essa língua velha de séculos) muda conforme os desejos dos gramáticos, o trânsito de Moledo e de Viana também sofreu alterações nos últimos anos; seriam todas as mudanças necessárias? Não tenho uma ideia completa sobre o assunto, mas tenho dúvidas.

in Revista Notícias Sábado – 3 Março 2007