Lições básicas de economia política
O
velho Doutor Homem, meu pai, passou a maior parte da sua vida a tratar de
segredos de direito bancário, uma especialidade pouco romântica, pouco popular
e nada literária. Eu, seu filho mais velho, segui as suas pisadas por preguiça
– na época, o sistema bancário tinha alguma coisa do século XIX, e os seus
escritórios e dependências albergavam retratos de gente ilustre que o tinha
inaugurado.
O
que acontece, pelas minhas memórias – e pelas que roubei ao velho Doutor Homem,
meu pai –, é que desde meados do século XIX Portugal pouco mudou. Tentei
explicar à minha sobrinha Maria Luísa que devia ler Oliveira Martins com o
argumento de que o seu ‘Portugal Contemporâneo’ era uma novidade editorial de
fôlego. Ela compreendeu a ironia: o país já não era uma terra de velhos e
austeros comerciantes ou prestamistas, mas continuava a ser administrado pelos
herdeiros do Constitucionalismo que ganharam dinheiro com as obras públicas de
Fontes Pereira de Melo, que ganharam dinheiro com o comércio de víveres e de
influência durante a República, que ganharam dinheiro com o regime do dr.
Salazar e que, finalmente, retomaram os seus direitos históricos com a
democracia de hoje. Esta visão, simples e injusta, merece-lhe aplauso. Por
instantes viu-me com um votante potencial do Bloco de Esquerda, preparado para
aclamar o casamento entre cavalheiros para fumar haxixe nas dunas ao fundo dos
pinhais de Moledo.
Remediado
e manhoso, tanto como ignorante e vaidoso, o Portugal do Constitucionalismo
prolongou-se até hoje. A Tia Benedita, a matriarca miguelista da família, que
não estudou economia nem chegou a conhecer o FMI, percebeu que ao velho regime
dos seus avós se tinha sucedido um casamento de conveniência entre os negócios
do Estado e os dos prestamistas e negociantes, o que garantiria uma alegre
corrupção colectiva – mas sem alma, sem espírito e sem travão a emprestar-lhe
alguma decência.
Os
Homem de várias gerações compreenderam esta arquitectura e viveram nas suas
margens, dedicados a sobreviver e a cuidar do colesterol alto, mal ele foi
inventado. Pertenciam a outro mundo. Ganhavam a vida, guardavam os retratos e
mantiveram reunidas as peças de Companhia da Índias no velho casarão de Ponte
de Lima. Mas não confiavam. Maria Luísa, a esquerdista da família, vê nisto um
sinal de honradez delicada. Não é bem isso; é, muito mais, o pessimismo ardente
de uma família de derrotados que vê o seu país entregue a comerciantes dos
sertões. Não é tão nobre, evidentemente, mas serve para dizer que já contávamos
com esta gente.
in Domingo - Correio da Manhã - 23 Setembro 2012
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