domingo, agosto 30, 2009

Sobre a felicidade que não custa dinheiro

É verdade que o dinheiro é um bem essencial. Mesmo a Tia Benedita, matriarca dos Homem durante muitos anos (continua a ocupar o lugar, de resto), com o seu catolicismo muito anterior ao Vaticano II, não desconhecia Max Weber se bem que nunca o tivesse lido. Nunca foi avara nem gastadora; notava-se nela, apesar do radicalismo ideológico, aquela doce e irritante característica dos Homem: a ‘media res’. A sensatez da vida prática, no fim de contas.

Apesar de termos sido educados no respeito pelo passado e pelos nossos pobres heróis de outrora, o velho Doutor Homem, meu pai, detestava a pompa empertigada da fidalguia das montanhas, que ele associava sempre às tropelias dos nossos antigos e lhe lembrava o senhor marquês de Chaves a cavalgar no meio das feiras, tanto quanto detestava a gente avara e os ricos que não gastavam dinheiro.

Fomos desde cedo, por isso, obrigados a trabalhar para viver condignamente, o que impediu a preguiça exagerada, da mesma forma que nos salvou da ambição desmedida, que ele considerava – com justiça – uma forma de luxúria sem prazer.

A verdade, dizia ele, é que os prazeres mais intensos e duradouros são absolutamente gratuitos e não dependem do forro da nossa bolsa. Relembro hoje, com a velhice minhota a aproximar-se de um novo Outono, que quase nunca paguei um preço excessivo pelas coisas que me deram verdadeiro prazer: um cadeirão na varanda, o perfume das mimosas (doce demais, e enjoativo no Verão), as caminhadas na praia de Moledo, a releitura do ‘Minho Pittoresco’, as torradas de Dona Elaine, as sestas no casarão de Ponte de Lima, a contemplação do crepúsculo ou das noites de Verão, os mexericos de família e os almoços dominicais.

Estas coisas fizeram a minha vida e prolongaram a felicidade dos grandes momentos – uma viagem, um amor de outrora, um vislumbre das coisas que estavam para vir.

Devo a Dona Ester, minha mãe, essa lição de parcimónia. Ela despejava-nos no areal de Afife e dava atenção aos momentos de felicidade que se eternizavam: o calor da areia, a pele bronzeada (que ela considerava um duplo atributo – o de servir para reconhecer uma vida saudável e o que assinalava a beleza da nossa vida), as corridas junto às ondas do mar, os passeios de bicicleta no passeio nublado da Foz do Douro. Não fosse isso e eu teria sido um vulgar burguês do Porto, rendido à contabilidade das coisas comuns e incomuns, das derrotas e das vitórias do meu destino. Com Dona Ester, minha mãe, aprendi o valor das coisas inúteis. Isso salvou-me da desgraça e deixou-me preparado para o futuro.

in Domingo - Correio da Manhã - 30 Agosto 2009

domingo, agosto 23, 2009

As duas repúblicas no meio do Verão

O Dr. Pulido Valente tocou no ponto: que não é possível comparar 'esta República' à República de Afonso Costa. A Tia Benedita, matriarca dos Homem, não privou com 'esta República' porque a de Afonso Costa a amedrontou o suficiente. Ela supunha que o demagogo ressuscitaria para assaltar as igrejas do Minho e comandar bandos de carbonários que andariam à solta pelas vilas. Durante anos, a senhora mal saía do casarão de Ponte de Lima, onde envelheceu, cheia de saúde. Mas tinha uma memória humilhante e humilhada da velha República, o único regime que conheceu verdadeiramente, se tivermos em conta que o ‘regime’ do dr. Salazar era o de um seminário de dominicanos da velha ordem, alimentado e vigilante, e que pouco respeito impunha a uma família que se habituara a sobreviver a tiranias e a paixões políticas.

Acontece que os festejos 'desta República' ameaçam transformar-se em festejos 'daqueles republicanos' (os da velha República), uma espécie de exéquias em honra dos 'heróis da Rotunda' e dos tiranetes que, pelas províncias fora, montaram o seu modo de vida. O que lá vai, lá vai. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que esta divisa era suficiente para afastar os fantasmas do passado e para, em pequenas doses, evitar o ressentimento. Tratava a Tia Benedita com as honras que se devem a uma relíquia, mas não lhe alimentava a velhice com recordações funestas.

A monarquia do Norte nunca comoveu os Homem, e os emissários de Paiva Couceiro saíram de Ponte de Lima com recomendações de que houvesse mais juízo e menos heroísmo empertigado. Isso não se devia ao republicanismo dos Homem mas à convicção de que a História escolhe os seus rumos segundo a bússola do acaso. A família tinha aprendido a lição de Évora Monte e evitava lembrar a procissão de condenados que tinha sido a derradeira viagem do Príncipe proscrito até ao porto de Sines, debaixo dos insultos da populaça e das ameaças dos verdugos. Depois da partida de D. Miguel para o exílio, os Homem acharam que a guerrilha do Remexido era uma prova de honradez mas condenada à tragédia (que acabou por acontecer da forma prevista, à traição). Setenta anos depois, a República não foi uma segunda Concessão de Évora Monte, mas o natural curso da História. O país amava os tiranos consoante o medo que eles provocavam. Como uma avalanche, a República ocuparia o país; quanto mais vítimas, mais apoio reunia. Era uma regra consagrada. O leitor pensa que isto não se devia dizer em pleno Verão, mas a pátria não tem descanso.

in Domingo - Correio da Manhã - 23 Agosto 2009

domingo, agosto 16, 2009

O dia em comecei a ser velho

Por ironia costumo dizer que nasci com trinta anos. Esta disposição prévia poupa-me a desconcertos e desaguisados com a História e livra-me da necessidade de constantemente justificar pormenores que a minha idade só por si justifica. Quando, certa tarde de Outono, uma das minhas irmãs que tinha regressado de uma temporada de férias em Cuba, me pediu a opinião sobre o assunto (o “assunto” era Cuba, não as férias dos turistas europeus, embevecidos com tanto rum a preço inflacionado, mas socialista), bastou-me mencionar que a minha idade adulta começou com Fulgencio Batista a tomar o poder – e não com os barbudos a descer para a Havana. Sou do tempo que Churchill, ai de nós, bebia conhaque e fumava abundantemente – e não do tempo em que ele se recorda como um símbolo da Europa. Sou, enfim, do tempo em que Juscelino Kubitscheck era um jovem presidente detestado pelas esquerdas – e não do tempo em que o regime militar lhe retirou os direitos políticos. Por falar em Brasil, sou do tempo em que Jânio Quadros, mais tarde incensado pela esquerda, proibiu o biquíni e decretou o ‘rock and roll’ fora da lei nos bailes da cidade de São Paulo – tudo aquilo que o dr. Salazar faria, se Portugal não fosse o corredor de convento que sempre foi.

De modo que nunca comecei a ser velho; pura e simplesmente deu-se o caso de ter nascido com a idade ideal. Não fui rebelde, não fui futebolista nem toquei guitarra durante a universidade, período durante o qual me procurei livrar do curso de Direito, fazendo-o regularmente, enaltecendo – sem saber – as virtudes da ‘aurea mediocritas’ doméstica, temendo o futuro e respeitando os retratos que a família guardou ao longo de séculos.

Muitas das ‘conquistas’ dos anos sessenta estavam garantidas dentro da família dez ou vinte anos antes – os banhos de mar, o óleo de bronzear, as viagens sem destino e o livre espírito. O velho Doutor Homem, meu pai, providenciou-nos, com largueza, uma amostra do que devia ser uma coisa que não existia entre nós: uma mentalidade conservadora e liberal. Liberal nos costumes, nas leituras, nas descobertas pessoais – e conservadora exactamente nos mesmos parágrafos, tendo em conta que não acreditava demasiado na propensão da humanidade para o bem.

Pessoalmente, a questão nunca se colocou. Educado para ser aquilo que eu pudesse querer ser, nunca quis ser jovem nem ter borbulhas e espinhas na cara. Eu gostava de ter sido alto, bem cuidado e inteligente. Como um inglês viajado, no fim de contas. Não aconteceu, mas não envelheci mais por isso.

in Domingo - Correio da Manhã - 16 Agosto 2009

domingo, agosto 09, 2009

Uma elegia do livro mascarada de elogio

A primeira vez que entrou na casa portuense da família um gira-discos moderno, munido de todos os equipamentos complementares necessários à entrada dos Homem no mundo civilizado, o velho Doutor Homem, meu pai, murmurou qualquer coisa sobre Anna Moffo, a soprano por quem se apaixonara em tempos e de que possuía uma colecção de discos de 78 rotações. O dia ficou memorável porque se escutou uma quase interminável quantidade de músicas populares que fariam corar um melómano. Um dos meus irmãos batalhara, durante semanas, sobre a necessidade dessa aquisição. Ninguém protestou. Nas velhas famílias há sempre um argumento para protelar um gasto excessivo ou extraordinário: é preciso procurar uma data. A data foi a Páscoa de 1967, que coincidia, nesse ano – mais coisa menos coisa – com o aniversário de Dona Ester, minha mãe.

Quarenta anos depois, parece-me que a grande ameaça à velha guarda da família – eu e os vasos de hibiscos guardados com temor na varanda do sul – são os instrumentos com que se lerão os livros do futuro. A nossa vida está comandada pelos ecrãs: o da televisão, o do computador, o do telemóvel e parece-me que muitos outros. Onde, em velhas máquinas outrora modernas, estavam botões que se rodavam, estão hoje materiais sensíveis que, através de ecrãs, exigem um suave toque com a ponta dos dedos. Ler um livro através de um ecrã parece-me uma inevitabilidade. E, claro, um contra-senso. Em primeiro lugar porque os livros do futuro não sabemo como vão ser e se terão frases escritas na nossa língua; em segundo lugar porque, vamos e venhamos, os livros são velharias que dependem apenas da boa vontade de bibliotecários, arquivistas, leitores forçados, leitores impenitentes, gente distraída das coisas do mundo e velhos fora de moda que não leram as mais recentes histórias de vampirismo. O livro é, em si mesmo, um mundo de pó e de contrariedade. Na biblioteca de Moledo, o livro continua a ser um mundo de pó que Dona Elaine, a governanta do eremitério, não consegue comandar nem extinguir.

O tio Alberto, bibliómano de São Pedro dos Arcos, dedicava aos livros (livros velhos, livros novos, papel pintado e impresso) a atenção que não dedicou a si mesmo. Um leitor preza o passado – não apenas pelos livros em si, mas pelo seu volume, pela sua arte e pela sua divindade.

O mundo de hoje não crê em divindades que não sejam obra sua. O livro pertence a um mundo antes deste. É uma velharia num mundo entregue a adolescentes que nem da adolescência conservam as borbulhas e as espinhas no rosto.

in Domingo - Correio da Manhã - 9 Agosto 2009

domingo, agosto 02, 2009

Como pecar sem se sentir pecador

A Tia Benedita não só acreditava na existência dos pecados mortais como, além disso, pensava que a sua lista devia ser periodicamente actualizada, bem como a dos castigos correspondentes. A sua teologia era profundamente positiva, ou seja, não perdia tempo com dúvidas nem variantes ao cânone, limitando-se a “fazer contas à vida espiritual”, tendo em conta que um lugar na eternidade não nos havia de ficar barato.

Nessa matéria, os Homem sempre conservaram – creio que foi isso que lhes permitiu terem sobrevivido às mudanças de clima, às alterações da espécie e à democracia – uma dualidade de critérios que os colocava no fio da navalha, e as suas ecolhas foram, frequentemente, mais tortuosas do que as velhas estradas dos Arcos de Valdevez.

Na verdade, as “pessoas normais” (eufemismo usado paredes dentro quando se fala de nós próprios) viveram sempre entre dois fascínios – pelo pudor e pela devassidão. Estas duas categorias morais aproximam-nos do Céu ou do Inferno consoante a circunstância. Na família há exemplos bastantes para ilustrar ambas, o que não significa nenhuma queda no “relativismo” mas, antes, a ideia de que a cada um cabe o seu destino. Há, portanto, pessoas que são levadas a uma vida virtuosa (entre elas cabe a Tia Benedita, com os seus terços, devoções e a conhecida embirração com a República) e pessoas que são arrastadas pela tentação (o caso de certas passagens da biografia do Tio Alberto, o bibliómano de S. Pedro dos Arcos) – mas ambas participam do conjunto de excentricidades de que uma família é capaz de exibir no julgamento final.

Afastados do palco, inibidos de mostrarem as suas credenciais políticas num mundo que punia as velharias e esquecia os derrotados, os Homem limitaram-se a viver a sua vida. O Minho é, apesar da Tia Benedita, um território de licenciosidade. Tudo contribui para a queda no pecado: a paisagem, que é luxuriante e desorganizada, tão cheia de clareiras como de esconderijos; a memória das suas guerras e paixões, que é aventurosa e lembra gestos corajosos; o clima, que é destemperado. Quanto ao género humano, ele é como é.

O velho Doutor Homem, meu pai, dizia que levar sobre os ombros a tarefa de transformar o mundo era uma catastrófica que, em geral, apenas atrai mais catástrofes. Portanto, devíamos, intimamente, aceitar que cada um escolhesse as suas tentações e os seus pudores. A minha sobrinha Maria Luísa não concorda; ela garante que “a civilização judaico-cristã” nos oprime com pudor a mais. Não acho. Na verdade, sempre se pecou com galhardia e não foi por isso que o mundo acabou. Só que há um grande picante em fazê-lo com pudor.

in Domingo - Correio da Manhã - 2 Agosto 2009