sábado, dezembro 30, 2006

Um mundo salazarista

O velho Doutor Homem, meu pai, acusava o mundo de estar cada vez mais salazarista ou, pelo menos, mais de acordo com as idiossincrasias do professor de Coimbra – o cavalheiro que, em seu entender, vestia (e calçava) na Saville Road de Santa Comba Dão ou nos alfaiates da alta (coimbrã). Herdeira da tradição miguelista, a família não achava bem o sarcasmo do causídico, mas passado o setembrismo e o cartismo, enterrado João Franco, tendo sobrevivido à República (com dificuldades acrescidas, como lembrava a Tia Benedita, matriarca dos Homem, apoiante de Paiva Couceiro e resistente à barbicha do Dr. Afonso Costa), tudo era possível. O momento fatal e definitivo, bem vistas as coisas, aconteceu no final da II Guerra, quando o governo achou que podia decretar três dias de luto nacional em memória do facínora austríaco – ou alemão, bem vistas as coisas. Aí, o velho Doutor Homem, meu pai, achou que era demais.

Ele acreditou, por instantes, que o mundo veria a luz e que os primeiros-ministros, doravante, se chamariam Winston Churchill. Tratava-se de um das suas ingenuidades, permitidas em tempo de guerra, que a família mais chegada acompanhou através de mapas estendidos na mesa da sala de jantar e sobre os quais o meu avô e o meu pai se debruçavam de óculos, verificando onde circulavam as tropas alemãs sobre o vasto território branco que era a velha Rússia. O branco da Rússia explica-se, porque não havia mapas com os países na margem direita do Báltico ou da Ásia Central, dando razão aos que pensavam que, a leste de Berlim se estendia um deserto gelado ocupado por tártaros, mongóis, pescadores de esturjão e comunistas. A excepção seria uma franja de temperatura quase moderada, à beira do Mar Negro, por onde passara um tio que, em tempos, se apaixonara por uma dama que tanto era persa como aparentada com o Czar. Não interessa.

Desiludido com a ingratidão do mundo em relação a Churchill e recusando-se a ver no antigo combatente na Índia mais do que um inglês de biografia humana e polvilhada de defeitos, o velho Doutor Homem, meu pai, aproveitou o luto nacional decretado em honra de Hitler para desertar definitivamente do regime, ao qual todos tínhamos pertencido. O meu pai vingar-se-ia, entretendo-se com ostras e presunto cozido à mesa do exilado Dr. Cunha Leal, então na Corunha. A facção ultramontana da família nunca perdoou ao velho Doutor Homem esses encontros com “o oposicionista”, invocando mesmo a palavra “apostasia” e reclamando castigo ou excomunhão ideológica. Eles não tinham aprendido a lição da falecida Tia Benedita que, informada do delírio, encolheu os ombros murmurando que o afilhado e sobrinho dilecto ia à Galiza comer polvo e ver mulheres, porque os homens seriam todos iguais, tirando o dr. Afonso Costa, que era um pouco pior.

De ilação em ilação, o velho Doutor Homem, meu pai, chegou ao triste epílogo, que era o seguinte: o ditador queria o povo sustentado a broa e batata, servindo-lhe um cálice de vinho fino de lustro a lustro, apenas para lhe lembrar que nem todas as recompensas eram divinas ou do outro mundo, como o atestaria a abundância de bacalhau, o peixe do regime, juntamente com a sardinha de barrica. De alguma maneira, tinha razão: havendo broa, sardinha e romarias da Senhora da Agonia, as razões de queixa diminuiriam. Ele estava ciente de ser injusto, porque a liberdade era um luxo.
Passados mais de cinquenta anos, o mundo continua salazarista embora, farto de samarras e cheviote, já não vista na Saville Road de Santa Comba Dão. Havendo sardinha de barrica, telemóveis, carros baratos e invenções tecnológicas, bem podem os mandarins instalar-se. No fundo, era esse o argumento do comunismo, o irmão gémeo, mas sem sotaina e cabeção, do salazarismo beirão; liberdade para quê, se havia pão na mesa?

Na semana passada, um dos meus irmãos comentou que teríamos agora um bilhete de identidade novo, onde se armazenaria toda a informação disponível sobre cada cidadão: os seus impostos e as suas doenças, as suas multas por excesso de velocidade e uma passagem pela prisão em 1975. Ele estava com dúvidas. Eu também: até agora, o meu médico das coronárias ignorava que de vez em quando a minha sobrinha me leva – nos arredores de São Miguel de Seide, onde vou em peregrinação anual celebrar Camilo e as suas penumbras – a almoçar rojões. Estão-me proibidos, mas a informação há-de entrar no “cartão único”. Estarei perdido.

in Revista Notícias Sábado – 30 Dezembro 2006

sábado, dezembro 23, 2006

Lágrimas de outrora

Tenho, com o forte da Ínsua, um dos ex-líbris de Moledo, uma relação estranha. Acontece-me isso com vários pontos da pai­sagem do meu Minho e da Galiza (porque acrescento sempre, em dias de neblina, as pedras negras de Santa Tecla, em La Guardia): são lugares que provocam um sentimento que me não pertence mas a que dou bastante crédito. Sou pouco melancólico; a velhice, em vez de me reduzir à serenidade de um crédulo, concede-me a graça de me julgar um sátiro.

O velho Doutor Homem, meu pai, achava pouca graça à melancolia de meia-idade e atribuía-a ao medo e à preguiça. Uma coisa (a preguiça), aliás, conduzia à outra; por isso, raramente cedia à tentação de entristecer – o que viesse, chegaria. O seu carácter pouco literário, mas muito cheio de livros, encarre­gou-se de provar que só a morte, a maldade e a vulgaridade eram fatais como o destino. O resto eram contingências. Como poderia o leitor de Yeats e de Tennyson escapar às garras da melancolia? Da mesma forma que as neblinas da ínsua me não pro­vocam tristeza, mas apenas o receio do reumático, que vejo como uma ameaça, rompendo os pinhais que sobem pela colina e aproxi­mando-se de casa.

Às vezes penso que serei castigado pela minha leviandade, mas temo que o Juízo Final me acolha antes como per­sonagem de comédia, em vez de avaliar os meus dotes poéticos. A minha sobrinha Maria Luísa não compreende como posso rir de coisas sérias – ela acha que um reaccionário, e ainda por cima minhoto, deve assemelhar-se a um fiscal dos impostos, vigiando a vida segundo a lógica do deve e do haver. Ela entende que as coi­sas sérias têm a ver com o sentido da vida ou com os gemidos diante da depravação. Ambas as coisas me enternecem, mas não cedo. Com esta idade descobri já, e abandonei, as ilusões acerca do destino: as coisas são como são. E a dissolução dos costumes, a discussão sobre como as pessoas são hoje mais igno­rantes e inúteis, os grandes debates sobre a condição humana — lamento, mas escuto-os há uma eternidade. Durante essa eternidade acompanhei os relatos perdidos da Primeira Grande Guerra e a crueldade distante (para nós, família portuense) da segunda; vieram revoluções que triunfaram e estátuas firmes (como a do dr. Salazar) que foram derrubadas e aviltadas. A melancolia não me apanha.

Por isso, a minha sobrinha acha que eu deveria conservar algum tento na língua. Tento argumentar sem muita filosofia, lembrando que, se as pessoas fossem mais alegres, ligeiramente mais levia­nas, menos acometidas do desejo de salvar o mundo – viveríamos todos muito melhor. Ela crê, na sua generosidade, que o mundo devia ser salvo e que nos devíamos preocupar com a educação dos outros, com o seu bem-estar absoluto ou, pelo menos, com a sua vida. Essa é outra das coisas que se aprende com dificuldade: a generosidade não se organiza, não se abriga sob nenhum "método de viver". E, se os homens acreditassem mais na compaixão do que nas suas utopias acerca de um mundo sem erros, teríamos sido poupados a alguns incómodos brutais.

Se há uma coisa que não choro são as lágrimas de outrora. Dona Ester, minha mãe, protegeu-me dessa tentação ao ensinar-me que não se deve sofrer demasiado por amor. Eles vão e vêm. É uma palavra gasta. O velho Doutor Homem, por alturas do Natal, defen­dia que as famílias deviam poder administrar soporíferos moderada­mente, para serem poupadas à histeria das Festas. Ele gostava do Natal. Herdei essa presunção, organizando os jantares e almoços da quadra, mandando vir de Vigo duas caixas de charutos, e presidindo ao ritual que consiste em verificar se a Companhia das índias da nossa Tia Benedita ainda está em condições. Cabem-me, alternadamente, nesta altura, os papéis de Matusalém e de 'pater famí­lias' que se tolera com a condescendência que o Natal exige. Depois, quando tudo passa e os meus irmãos e sobrinhos regres­sam a casa, o eremitério de Moledo readquire a sua solidão e algu­ma da sua frieza.

É a única melancolia da minha vida, no fundo. Este ano, para aliviá-la, decidiu-se que os charutos canarinos seriam substituídos por havanos legítimos, e que me caberia fazer um dis­curso. É por isso que desde há uma semana não leio senão Camilo, à procura de sarcasmos que me fiquem baratos. O riso é uma defe­sa muito séria contra a passagem dos anos. A minha sobrinha vai ficar surpreendida.

in Revista Notícias Sábado – 23 Dezembro 2006

sábado, dezembro 16, 2006

Assuntos da Pátria

Um dos grandes assuntos portugueses versa o assunto da violência. Somos ou não gente de brandos costumes? A expres­são é deficiente e falta-lhe sentido. Para sermos gente de brandos costumes necessitávamos de ser gente com costumes e, pelo menos vista de Moledo, a Pátria está sem eles; não é uma falta grave, bem vistas as coisas, porque se sobrevive bem, assistindo pela televisão ao 'Prós e Contras' e desligando-a sempre que se vê uma telenovela portuguesa.

A questão das telenovelas tenho-a sobretudo com Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, que me faz perguntas desca­bidas acerca dos costumes que vê na televisão, à hora a que as famílias deviam dedicar-se já não sei a quê. Dona Elaine, que apro­veita o facto de em casa se jantar relativamente cedo para poder regalar-se com pelo menos duas telenovelas, acha aquilo uma pouca-vergonha. Reconheço-lhe alguma razão, embora nunca tenha visto um episódio inteiro depois de assistir aos últimos capítu­los de 'Gabriela Cravo e Canela'. O defeito é meu.

O velho doutor Homem, meu pai, assinalava o hábito duvidoso de haver teatro dito em português, que o causídico considerava uma língua imprópria para registar acontecimentos. Ele achava que de Fernão Lopes até à imprensa pós-25 de Abril (ele sobreviveu oito meses à revolução), não se aprendeu no País a contar um facto simples com predicado, sujeito e complemento directo. Era exagero de certa insensatez, o que ia bem com o seu feitio teimoso. Mas quanto ao teatro tornou-se verdadeiramente abstémio, depois de se representarem peças na televisão revelando a fraqueza do idioma e a sua inadequação. Eu compreendo-o, mas desculpo o idioma, que não foi chamado à barra; tratava-se, antes, do trejeito excessivamente dramático dos nossos actores, que não deixava pedra sobre pedra da sanidade mental de um pobre homem que qui­sesse assistir a uma peça de teatro sem ser obrigado a meditar sobre o sentido da vida. O meu pai foi mal habituado; ele viu o grande teatro inglês. Daí em diante quase tudo lhe pareceu despro­positado e perda de tempo. Na semana passada, pelo canto do olho, vi e ouvi um pouco de uma teleno­vela portuguesa.

Fiquei surpreendido porque supunha que o meu país não falava daquela maneira; tam­bém não imaginava que as telenovelas esbanjassem tanta vulgaridade e extravagância acerca "das relações humanas", eufemismo usado frequentemente para significar que homens e senhoras se dão bastante. Nessas ocasiões, abro um livro de Mrs. Trollope e dou graças por não sucumbir à miséria do espírito. Mas o país já não me pertence e eu ultrapassei a idade em que é aceitável ter opinião, um dos produtos portugueses de que não podemos queixar-nos, pois temo-la em abundância e largueza. No almoço deste domingo, por exemplo, o tema rondou os "brandos costumes". Antes os houvesse. Mas não. A tia Benedita especiali­zou-se, nos anos derradeiros da sua permanente campanha contra a República e o fantasma do dr. Afonso Costa, em lembrar os episó­dios mais grotescos da "Noite Sangrenta" em que Abel Olímpio, o Dente de Ouro, assassinou o dr. António Granjo nos terreiros do Alfeite, empurrado pela turba radical. Naquela abundância de san­gue que podia ter inaugurado o terror republicano, estaria a negação dos nossos brandos costumes. Lembrei o facto, mesmo sabendo que a matriarca da família era cruel quando se tratava da República. Como assistira ao regicídio, ao assassínio de Sidónio, à "Noite Sangrenta" e aos sermões dos missionários de Ponte de Lima e de Braga, desenvolveu um grande ressentimento contra o regime e o próprio hino. O velho doutor Homem, meu pai, assegurava que isso a mantinha viva e funcionava como um antídoto contra a gota, as complicações renais e as gripes.

Não, não acredito na doutrina dos "brandos costumes". Geralmente confunde-se o clima magnânimo do extremo peninsular (esse sim, brando) com a temperança dos nossos concidadãos. O dr. Salazar viu o ponto quando submeteu o País à pobreza da sua infância e aos traumas da sua vida sexual; as suas botinas (compradas na "Saville Road de Santa Comba", como insistia o velho Doutor Homem, meu pai), que não deixavam de ser elegantes, escondiam um tempera­mento aborrecido que nunca abandonou verdadeiramente a Beira Alta. A sua obstinação e a sua vaidade transformaram-nos num país envergonhado. Contra isso, as telenovelas julgam que mudam o País, lá por serem "modernas"; não – apenas revelam a sua face mais embriagada e desprezível.

in Revista Notícias Sábado – 16 Dezembro 2006

sábado, dezembro 09, 2006

Coisas sem enfado

Os velhos levantam-se mais cedo por dois motivos: não só dormem menos como se recolhem mais cedo. São hábitos de anos que moldaram o carácter e as funções vitais de gerações habituadas a ritmos que, de ordinário, se destinavam a gente que trabalhava cedo, que tinha obrigações domésticas e que acreditava ser bom para a saúde cedo erguer e cedo adormecer.

Até ao aparecimento da televisão, da rádio por vinte e quatro horas, da luz eléctrica, da cafeína distribuída a rodos e dos medicamentos para dormir, os dias de antanho terminavam com aquela placidez que se atribui ao tempo dominado pelo silêncio – o meu e o dos meus avós, e por aí fora, até sermos devolvidos à criação do mundo.

Contra todas as expectativas, acho que esse tempo era enfadonho. Não triste, nem inútil, ou desagradável – apenas enfadonho. Havia crepúsculos magníficos, trovoadas que eram sublimes, demonstrações do oculto e até noites profundas e conversadoras. As grandes novidades deste tempo comovem-me um tanto, embora não as ache saudáveis ou, sequer, muito úteis. Servem, certamente, para que a nossa vida fique menos enfadonha; mas peço ao leitor que acompanhe o meu raciocínio: uma vida com sinais enfadonhos não é neces­sariamente desinteressante ou triste. A vida não tem de assemelhar-se às festas da Senhora da Agonia pressentidas dos pinhais dos arredores, nem havia pirotecnia que chegas­se. Há, portanto, um preço a pagar pelas coisas.

O velho doutor Homem, meu pai, era um dos grandes inimigos dos provérbios e da sabedoria popular, que ele achava ser como o senhor general Carmona, flutuando de acordo com as conveniências e errando nos momentos cruciais. Ele achava que era neces­sário um grande espírito de abnega­ção para se ser feliz. De abnegação e de conformismo, no fim de contas. Lançando-me (com o patrocínio esclarecido de dona Ester, minha mãe) num período de razoável futili­dade destinado a fazer esquecer males de amor e o que na altura se designava por "desencontros amoro­sos", o seu conselho foi que "apro­veitasse" - o que eu fiz -, porque a vida tinha coisas para serem aproveitadas, mas não falou em "prolongamento". Ele sabia que o 'glamour' e o devaneio amo­roso, tal como a alta velocidade a que se corre de vez em quando, eram luxos praticáveis de tempos a tempos, bons para morigerar o colesterol da paixão ou os excessos de insó­nia. Mas, ai de nós, mortais – era necessário regressar.

Hoje, dobrando aquela idade que não me transporta a mais memórias mas apenas às primeiras franjas do esquecimento, continuo a levantar-me cedo e a aproveitar a bonomia das madrugadas. É um bom momento do dia. Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, serve o pequeno-almoço a partir das sete e meia (eu apareço um pouco depois); há vinte anos que se repete, dia-a-dia, o cardápio do pequeno-almoço, tal como a sobremesa do almoço de Ano Novo. O meu médico acha que isso é um benefício para a minha saúde e eu não desminto a sua fé científica no ritmo madruga­dor, nos banhos de mar (ah, o iodo!) e nos passeios a pé pelo paredão de Moledo. No fundo, trata-se apenas de uma discipli­na que me permite ler os jornais antes das nove da manhã e escrever estas crónicas que devo terminar até segunda-feira à hora de almoço. É um ritmo como qualquer outro, adquirido por anos de insignificância.

A minha sobrinha Maria Luísa acha que em Moledo se dorme melhor; eu admito que se acorda melhor. Ela vive noutro mundo e ignora o valor do hábito, da repetição e da monotonia. Achará tudo isso, evidentemente, conservador. Na verdade, ela tem razão, embora se possa ser uma múmia conservadora acordando apenas depois de almoço. Estaline acordava pelas onze da manhã; em meu entender, isso é meio caminho para a barbárie. Mas o doutor Salazar, que era madrugador, chegou lá por outros caminhos, que, como se sabe, costumam ser insondáveis.

in Revista Notícias Sábado – 9 Dezembro 2006

sábado, dezembro 02, 2006

Ouvindo rádio

O velho Doutor Homem, meu pai, ouvia rádio no seu escritório. Ele pertencia ao tempo em que havia silêncio, tal como eu pertenci ao tempo em que todas as fotografias de família eram, ainda, a preto e branco. Esse universo terminou há muito e apenas o refiro como uma espécie de nota de rodapé esquecida nos nossos hábitos. A rádio do Doutor Homem, meu pai, não tinha apenas música – mas era uma velharia saudável, cheia de palestras, gramática correcta e vozes treinadas a brilhar e a serem escutadas no meio do silêncio das salas de estar (as “saletas”). A hora dos folhetins radiofónicos chegaria para anunciar a telenovela dos nossos dias, como Camilo tinha previsto que aconteceria quando escreveu os seus “Doze Casamentos Felizes”, para não irmos mais longe (mas poderíamos).

Conservo esse derradeiro aparelho que serviu para acompanhar os noticiários da última revolução a que os Homem sobreviveram, em 1974: uma peça de mobiliário que ocupa um recanto do que na casa de Moledo se chama “a biblioteca”. No dia 25 de Abril desse ano, à noite, chamado por três quartos da família mais próxima para ver a televisão e assistir ao pronunciamento à pátria (a restante estava dividida entre um jantar inadiável em Melgaço para celebrar a temporada da lampreia e a apreensão causada pela saída dos militares à rua), o velho causídico arrastou-se pelo corredor, resmungando que estava a seguir as coisas pela rádio e que “bem conhecia o pantomineiro de monóculo”. Daí a pouco, satisfeito com o facto de as suas previsões coincidirem com as premonições gerais da pequena multidão reunida nos sofás e no chão da sala (ou seja, de que as coisas podiam correr bem se, como todos sabiam que ia acontecer, não fossem correm como correram), regressou ao aparelho de rádio, lamentando que tivessem cancelado um dos seus programas. Em jeito de despedida, ainda avisou: no fim de contas, “o pantomineiro de monóculo ainda era o melhor de todos”.

O meu pai morreu oito meses depois da revolução, sobrevivendo-lhe com decência e mantendo uma circunspecção inesperada em relação aos acontecimentos, evitando fazer comparações com tragédias ou epifanias. Nessa altura, “o pantomineiro de monóculo” já tinha sido substituído por novos pantomineiros. Nove anos depois, numa homenagem à sua maneira de passar os serões, trouxe para Moledo o aparelho de rádio que, valha a verdade, raramente foi usado daí em diante. Era uma velharia que viria a ser substituída por “uma aparelhagem” e, depois, por um conjunto sofisticado de máquinas que julgo produzirem som a partir de discos compactos, e que os meus sobrinhos instalaram depois de um Natal cheio de novíssimas tecnologias.

Com o passar dos anos, o meu aparelho de rádio preferido passou a ser a pequena caixa de plástico que estacionou numa prateleira da casa de banho e que me informa, todas as manhãs, acerca do trânsito em Lisboa e no Porto, da meteorologia para lá dos pinhais de Vila Praia de Âncora e das minudências da política.

Frequentemente, as pessoas interrogam-se sobre como puderam sobreviver sem rádio, como os meus sobrinhos se preocupam ao tomar conhecimento do insólito facto de não ter havido televisão na infância dos seus pais (os jornais são o que no resta de vício conhecido pelos anais da história). Nesse conjunto de espantos, certamente sinceros, há ainda almas que tremem de pavor ao descobrirem que os telemóveis são invenções recentes.

Por mim, tenho resistido à exigência de possuir um telemóvel no bolso. A idade não mo aconselha, vou dizendo. Nos bolsos, uso apenas um lenço, o relógio que pertenceu ao meu avô (que o recebeu de um inglês do Douro a quem administrava as vinhas) e a pequena caixa que contém a dose diária dos comprimidos que cuidam das pobres coronárias. A minha sobrinha Maria Luísa, que tem dois telemóveis, tentou informar-me das vantagens de comprar um; parece que a principal delas é poder falar com quem queremos, onde quisermos, além de podermos ser contactados em qualquer lugar, coisa que não me seduz muito. Bem vistas as coisas, o único estranho que me contacta sempre à mesma hora é um senhor da rádio que, logo de manhã, me esclarece que chove em Lisboa ou anuncia que vai trovejar no Porto ou nas Beiras. Aguardo pacientemente que me informe sobre a queda das folhas da meia dúzia de plátanos ao fundo da rua, ou sobre a hora a que chega o correio ao portão de casa. Ele mantém-se renitente. Teimamos, cada um por seu lado. É isto a vida.

in Revista Notícias Sábado – 2 Dezembro 2006