domingo, agosto 05, 2012

O retrato de um cavalheiro discreto


O velho Doutor Homem, meu pai, era advogado e creio que não leu Montaigne. As suas leituras, a partir de certa altura, confinavam-se ao essencial de um espírito que tinha feito as suas escolhas e que raramente precisava de sair delas. Ele morreu, serenamente, em Novembro de 1974, lamentando que o dr. Palma Carlos não tivesse continuado primeiro-ministro e, ao mesmo tempo, confirmando que “o coronel do monóculo” era vaidoso demais para um país tão pequeno. Por várias vezes tivemos de lembrar-lhe que “o coronel do monóculo” era um general, mas a informação não surtiu efeito, despromovendo-o . Este género de teimosia era comum na família – a Tia Benedita acreditou até ao fim da vida (deixou-nos no interessante Verão de 1968) que o dr. Afonso Costa regressaria para perseguir os padres e roubar os tesouros das igrejas do Minho. Depois de 1937 também por várias vezes a informámos do falecimento, em França, do ditador da República. Em vão. Com ela, todo o cabido da Sé de Braga esteve sempre em perigo, correndo o risco de ser passado à baioneta às mãos do demagogo.

Refiro Montaigne porque o conjunto de interesses do velho Doutor Homem, meu pai, era tão variado como o foi a leveza da sua vida. “As almas mais belas”, dizia o mestre francês, “são as que têm mais variedade e flexibilidade”. Ao passar os olhos pela sua biblioteca (que herdei aos poucos e desorganizei com aplicação), revejo um homem que alimentou uma grande curiosidade pelo mundo – e cuja grande ambição era ler os editoriais do ‘The Daily Telegraph’ nunca com menos de dois dias de atraso para não ficar desactualizado em matéria de doutrina. Essa curiosidade fez dele uma espécie de “homem do Renascimento”. Isso fez dele um ser acessível e bem-humorado, tanto quanto disponível para as descobertas e desvarios da humanidade. A sua capacidade de escandalizar-se era mínima; aceitava com tranquilidade os divórcios da família (que se repetiam com regularidade) e tinha uma fé ilimitada na nossa competência para cometer erros amáveis que depois seriam corrigidos a expensas próprias. A esta distância recordo-o como um cavalheiro cordato que não gostava de fatos assertoados nem de trinados do fado português; sobrevivendo a Dona Ester, minha mãe, tentou ser um solitário, sem o conseguir. Perseguiam-no a música, a leitura, a paixão por Inglaterra e o riso que o fazia desconfiar do país, que ele achava inteiramente ingovernável enquanto não existissem uma câmara dos Lordes – e um Speaker’s Corner na esquina da Avenida dos Aliados.

in Domingo - Correio da Manhã - 5 Agosto 2012