domingo, julho 29, 2012

Um personagem de romance esquecido


Das nossas aventuras pelo império sobrou pouco. Felizmente, o velho Doutor Homem, meu pai, impediu o tio Henrique (que peregrinou por Angola, Moçambique e passou uma temporada na Índia) de compor uma obra sinfónica sobre o tema, convencendo-o a melhorar a sua perícia do oboé apenas num raio confinado à sua casa nos arredores dos Arcos de Valdevez, onde os seus antepassados se tinham dedicado a envelhecer felizes sem grandes preocupações musicais.

De resto, os sertões de África nunca mais inspiraram qualquer outro talento dos Homem; e, tirando uma ou outra recordação das colónias, como uma mesa de pau preto ou a malária do tio Henrique, a nossa ligação ao império manteve-se durante anos apenas graças ao caril servido periodicamente a pedido de Dona Elaine, que, não sabendo distinguir Goa de Nagar Aveli, ainda ouviu mencionar vagamente o Estado Português da Índia.

Os despojos do tio Henrique, valha a verdade, eram dignos de um romancista; limitaram-se a uma maleta de couro antiga onde cabiam uma dúzia de camisas brancas e imaculadas, feitas por medida no alfaiate Edward Loureiro & Sons, Goa; uma navalha de barbear com cabo de marfim; um horário de comboios africanos (‘East African Railways & Ship Lines’) que por certo nunca lhe foi de grande utilidade; dois baralhos de cartas; um pequeno manual de contabilidade doméstica publicado nos anos trinta pela Livraria Arnado; e um cachimbo demasiado grande para ser levado a sério.

Estes bens, dispersos e irrelevantes, foram guardados pelo seu irmão, o meu bom tio Alberto, bibliófilo e gastrónomo de São Pedro de Arcos, e depois da morte deste confiados ao casarão de Ponte de Lima, onde repousam no meio de velharias que o tempo há-de devorar.

Tenho pelo tio Henrique uma admiração vaga, que nunca deixou de ser adolescente nem romântica. Imagino-o na varanda da sua casa dos Arcos de Valdevez, atormentado pelas doenças que trouxe do Índico, sonhando ser um coronel inglês das Índias retirado para escrever as suas memórias. Nem a idade, nem o mal de Parkinson, nem as gripes constantes lho permitiriam. Por vezes, naquela tranquilidade das montanhas do Minho, devia ouvir, sempre e apenas na sua cabeça, os acordes triunfais da sua sinfonia sobre as campanhas do Ultramar. Mas o resto da família não mostrava grande compreensão, tirando o tio Alberto, que fez do seu irmão mais velho um personagem de romance. Mas esse romance teria de ser escrito noutra língua e noutro lugar. Ninguém imagina que tivéssemos sido heróis em algum lugar.

in Domingo - Correio da Manhã - 29 Julho 2012