domingo, julho 22, 2012

Uma família minhota e a doença do cinismo


O cinismo é uma das velhas árvores genealógicas da família. Digo-o assim para que não pareça que me refiro a um vício; o riso de Voltaire devia ter um antídoto nas velhas cãs do conservadorismo minhoto – e se a ala progressista (uma espécie de conciliábulo de clones do dr. Mário Soares, mas numa versão cultivada e com algumas leituras) das nossas províncias se excitava com o autor do ‘Cândido’, isso não se devia às virtudes do filósofo, mas ao facto de irritar os abades e fazer corar as famílias.

Tirando as indicações dos abades, justamente, a Tia Benedita sabia de Voltaire o que tinha sido publicado nas páginas do ‘Aurora do Lima’ ou do ‘Cardeal Saraiva’, e o que um primo do Conde d’Aurora (saudoso autor do ‘Roteiro da Ribeira Lima’), correspondente do meu avô, deixara numa conferência dos anos quarenta. Isso era suficiente para acreditar que o seu sobrinho, o velho Doutor Homem, meu pai, tivera algum dia simpatias maçónicas.

Seja como for, o velho Doutor Homem, meu pai, apreciava Voltaire. Ele acreditava que todos temos um pouco da mediocridade do doutor Pangloss, embora preferisse a conclusão derradeira, a de que “devemos cultivar o nosso jardim”, uma espécie de eco do seu mestre Montaigne. Mas se Montaigne (tal como Samuel Johnson ou Samuel Pepys) se reservava para os grandes momentos, que eram raros e precisavam de auditório, o cinismo alastrava com mais facilidade porque tinha, digamos, “aplicações práticas”.

O principal alvo do cinismo era “a política”, esse mundo desagradável que tanto produzia catástrofes como pantomineiros, sendo que a família sempre optou pelos últimos. Afastados da “política” desde a partida do príncipe proscrito para Génova, abandonando os areais de Sines aos maltrapilhos, os Homem consideraram largamente a hipótese de emigrar. Um sopro de sensatez impediu-os; de tempos a tempos (como no caso do Tio Alfredo, que fez fortuna no Pernambuco), um deles partia, mas por razões puramente românticas. O desinteresse era tal que o pai da Tia Benedita, quando dois enviados de Paiva Couceiro o visitaram a pedir ajuda para a incursão de Vinhais, recomendou-lhes que tivessem juízo e se vestissem mais a rigor. O gesto nunca foi recordado nem esquecido; é apenas uma das nódoas que macula a honorabilidade da genealogia.

Isto faz de nós gente pouco recomendável em matéria de virtudes cívicas. Pagar impostos, desconfiar, sorrir quando se ouvem elogios às virtudes da democracia. É este o nosso estado natural enquanto não chega o Verão. Depois, pioramos.

in Domingo - Correio da Manhã - 22 Julho 2012