Uma família minhota e a doença do cinismo
O cinismo é uma das velhas árvores genealógicas da família.
Digo-o assim para que não pareça que me refiro a um vício; o riso de Voltaire
devia ter um antídoto nas velhas cãs do conservadorismo minhoto – e se a ala
progressista (uma espécie de conciliábulo de clones do dr. Mário Soares, mas
numa versão cultivada e com algumas leituras) das nossas províncias se excitava
com o autor do ‘Cândido’, isso não se devia às virtudes do filósofo, mas ao
facto de irritar os abades e fazer corar as famílias.
Tirando as indicações dos abades, justamente, a Tia Benedita
sabia de Voltaire o que tinha sido publicado nas páginas do ‘Aurora do Lima’ ou
do ‘Cardeal Saraiva’, e o que um primo do Conde d’Aurora (saudoso autor do
‘Roteiro da Ribeira Lima’), correspondente do meu avô, deixara numa conferência
dos anos quarenta. Isso era suficiente para acreditar que o seu sobrinho, o
velho Doutor Homem, meu pai, tivera algum dia simpatias maçónicas.
Seja como for, o velho Doutor Homem, meu pai, apreciava
Voltaire. Ele acreditava que todos temos um pouco da mediocridade do doutor
Pangloss, embora preferisse a conclusão derradeira, a de que “devemos cultivar
o nosso jardim”, uma espécie de eco do seu mestre Montaigne. Mas se Montaigne
(tal como Samuel Johnson ou Samuel Pepys) se reservava para os grandes
momentos, que eram raros e precisavam de auditório, o cinismo alastrava com
mais facilidade porque tinha, digamos, “aplicações práticas”.
O principal alvo do cinismo era “a política”, esse mundo
desagradável que tanto produzia catástrofes como pantomineiros, sendo que a
família sempre optou pelos últimos. Afastados da “política” desde a partida do
príncipe proscrito para Génova, abandonando os areais de Sines aos
maltrapilhos, os Homem consideraram largamente a hipótese de emigrar. Um sopro
de sensatez impediu-os; de tempos a tempos (como no caso do Tio Alfredo, que
fez fortuna no Pernambuco), um deles partia, mas por razões puramente
românticas. O desinteresse era tal que o pai da Tia Benedita, quando dois
enviados de Paiva Couceiro o visitaram a pedir ajuda para a incursão de
Vinhais, recomendou-lhes que tivessem juízo e se vestissem mais a rigor. O
gesto nunca foi recordado nem esquecido; é apenas uma das nódoas que macula a
honorabilidade da genealogia.
Isto faz de nós gente pouco recomendável em matéria de
virtudes cívicas. Pagar impostos, desconfiar, sorrir quando se ouvem elogios às
virtudes da democracia. É este o nosso estado natural enquanto não chega o
Verão. Depois, pioramos.
in Domingo - Correio da Manhã - 22 Julho 2012
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