Os guarda-chuvas de Outono
Nenhuma crónica, comentaria o velho Doutor Homem, meu pai,
poderia começar com a expressão “a chegada do Outono”. Um mínimo de sentido
crítico iria relegá-la para a ordem das redacções da escolaridade obrigatória –
que, na época, não existia. Um enorme conjunto de expressões e de metáforas e
imagens obrigatórias fez a felicidade da “literatura escolar” (o arvoredo era
obrigatoriamente “luxuriante” e o amor fraternal passava sempre por
“comovente”), tal como hoje são repetitivas as fórmulas das notícias das televisões.
O nosso habitual fornecedor de águas de Melgaço também acha que tem de
“implementar” um novo “sistema de distribuição” quando quer dizer, com
exactidão, que vai passar a entregar a caixa quinzenal às sextas-feiras em vez
de o fazer às terças.
Mas a verdade é que o Outono apareceu de repente. Ao fim de
semana, as dunas de Moledo são ainda um lugar de passeio, mas a foz do Minho, à
direita, ao longe, assemelha-se aos pequenos estuários enevoados da costa de
Biarritz, transformando a nossa província numa réplica do cosmopolitismo
romântico do tempo dos meus pais. A minha sobrinha Maria Luísa escolhe as
margens do Minho, em Caminha, para marchas matinais entre os amieiros e
choupos, ao sábado. Ela julga que os passeios a pé são tónicos para o resto do
dia (e mesmo da semana) e eu acompanho-a por vezes, à distância, percorrendo
cem metros no mesmo tempo em que ela perfaz, ao cronómetro, um ou dois
quilómetros de passo acelerado.
O velho Doutor Homem, meu pai, também acreditava nas
virtudes curativas dos passeios a pé, mas vestia-se como um elegante para subir
e descer a rua dos Clérigos. A vinda do Outono significava, para aquele bom ‘dandy’
portuense que sonhava viver em Inglaterra, o regresso da roupa de meia estação,
um figurino que hoje não existe mas que, na época, significava o uso de colete
ou de tweed, e a companhia de um guarda-chuva previdente. Hoje, em vez de mudar
de roupa, as pessoas lamentam-se pelas correntes de ar que vagueiam ao longo da
costa galega.
A ausência de guarda-chuva é o que distingue este tempo da
época em que a meteorologia era tão irregular como a chegada do comboio de
Viana. O velho Doutor Homem, meu pai, acreditava que o uso de guarda-chuva era
um sinal de resignação diante das imprevisibilidade dos Elementos (que passavam
por um período de descoordenação durante as primeiras semanas de Outono) e uma
tentativa de desacreditar injustamente o Dr. Anthímio de Azevedo que, na
televisão, anunciava ‘o tempo’ para o dia seguinte.
in Domingo - Correio da Manhã - 30 Setembro 2012
<< Home