O livro das recordações
Em casa, o ‘fox
trot’ (em discos, para os gramofones de antanho) está ligado ao tempo em que
perdemos os territórios ocupados pela União Indiana. Na época, o gramofone
estava instalado no móvel de cedro que os antepassados salvaram da revolução
como uma relíquia que nos lembraria o tempo em que tudo ‘estava em ordem’. Pura
ilusão; não havia ordem nesse tempo; apenas teimosia e um certo comodismo.
Antes e depois de 1820 (e, sobretudo, de 1834, data da concessão de Évoramonte)
os Homem seguiram sempre o seu caminho com a impressão de estarem desligados do
mundo e sujeitos apenas às suas obsessões. Até hoje, data em que recordo os
discos de ‘fox trot’, o gramofone inglês, a perda de Nagar-Aveli em 1954 e a
velha sala da casa portuense.
Nessa altura,
querendo contrariar a ideia de que estava iminente o fim do mundo, o velho
Doutor Homem, meu pai, lembrou que tudo já estava escrito desde que,
atravessando o longínquo e pedregoso Ipiranga, D. Pedro tinha encerrado a
questão colonial. A Tia Benedita, a guardiã miguelista da família, concordou e,
até ao fim da vida, acreditou que o Ipiranga não era um rio mas uma divisa
moral que assinalava o tempo em que a pátria começava a desmoronar-se (nem as
campanhas de Mouzinho serviram para atenuar o pessimismo da família). Daí até à
chegada do dr. Afonso Costa, as catástrofes iriam suceder-se na sua tábua
cronológica, e mesmo para além dela, até à invenção da mini-saia e à chegada de
padres com barba coimbrã à província do Minho.
Nessa altura,
sob os escombros desconhecidos e melancólicos de Dadrá e Nagar Aveli, sempre
desvalorizados diante da futura hecatombe de Goa, eu sonhava ir a Paris e
regressar a Londres para refazer o guarda-roupa e curar-me de males invisíveis.
Dona Ester, minha mãe, queria que eu escolhesse Londres, mas sem o dizer
claramente. Quanto mais longe, melhor. Ela enviara-me já para o Rio, onde
passei três meses como se se tratasse de uma prescrição médica, e, na verdade,
como boa leitora de Júlio Dinis, sempre sonhou com uma nora inglesa, ruiva, sem
bronquites nem medo das praias do Minho.
Nem ela o
conseguiu nem eu regressei a Londres nessa altura. Tive de esperar. Passou a
ruína do Império. O meu tio Alfredo regressou do Pernambuco e instalou-se perto
de Afife. O tio Alberto apaixonou-se por uma princesa nas margens do Cáspio. A
tia Benedita partiu, serenamente, num Verão em que mudaram o repertório das
bandas de música de Ponte de Lima. O livro das recordações apenas fixou o ‘fox
trot’.
in Domingo - Correio da Manhã - 8 Julho 2012
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