Viagem ao passado com as pedras
O
velho Doutor Homem, meu pai, sentia-se bem nos verões do casarão de Ponte de
Lima, onde apreciava a biblioteca, os discos de Anna Moffo, as trepadeiras e os
dois liquidâmbares fronteiros ao grande portão de ferro da entrada. O resto era
a família, desorganizada e anárquica, desocupada durante aquele tempo
desprevenido, preguiçoso e cheio de gastronomia regional, além desse quadro
bucólico de sobrinhos e netos saltando muros e fugindo dos morcegos.
A
melancolia, que era rara, tocava-o na passagem pela costa de Montedor (a falar
verdade, já o tinha tocado antes, nas ondas à vista do Neiva, quando o velho
Ford, carregado de crianças, subia do Porto para as margens do Lima),
suspeitando ao longe a torre do farol, a cuja construção assistiu, espreitando
sobre o manto de sargaço que se espalhava nas praias, rente às dunas que
confinavam com o pinhal da Gelfa. Hoje, quando folheio páginas amarelecidas do
‘Minho Pittoresco’ ou retratos de igrejas em postais ilustrados dos anos
quarenta (havia uma certa inclinação pelas obras de Manuel Fernandes da Silva,
o arquitecto setecentista da região), recordo aquilo que o velho país nos
legou: um mapa de relíquias que não compreendemos.
De vez
em quando, no intervalo da canícula, o ramo arqueológico da família partia em
busca de um solar escondido entre a neblina e o verde das colinas (como a Torre
da Quintela, em Nogueira, inclinada para Ponde da Barca, ou o Paço de Curutêlo,
uma espécie de ameia despenteada entre árvores de fruto), de uma igreja que
escapara à protecção do arcebispado, de uma ponte que atravessava um rio no
lugar mais inóspito. Não tentavam compreender as relíquias; limitavam-se a
contabilizá-las como um amealhador incansável e cioso dos seus bens, dispersos
nos taludes da Serra Amarela, nas matas do rio Homem, nos empedrados de Terras
de Bouro ou entre os amieiros do Lima ou do Cávado.
Hoje,
tento dispersar essas informações a sobrinhos que chegam a Moledo arrastando
consigo o peso da civilização. Se o iodo não me basta como argumento para
elogiar o mar do Minho, menciono a felicidade de ter encontrado, à vista da
Ínsua, ramagens de ‘Salix arenaria’ ou de cardo marinho ainda em flor. Também
isso não basta. Recomendo então visitas às margens do pequeno rio Âncora com o
argumento de que há águias de asa redonda em volta da Serra d’Arga. Vejo que o
meu deslumbramento não basta; pertencemos, portugueses, a séculos diferentes,
pousados em promontórios de onde se avistam países igualmente diferentes.
in Domingo - Correio da Manhã - 1 Julho 2012
<< Home