domingo, junho 28, 2009

Lições de economia e de avareza em geral

Descobri sem surpresa, mas rendido às evidências, que a minha sobrinha Maria Luísa já não espreme a pasta dentífrica pelo meio mas pela base, enrolando-a metodicamente. Nunca tendo acreditado em ‘equivalências morais’ mas confiando no rumo da História, isto corresponderia a acreditar que o dr. Afonso Costa ia – às escondidas – beijar o lausperene da Sé de Braga sob olhar embevecido de D. Rodrigo de Moura Teles, que tinha sido arcebispo da arquidiocese duzentos anos antes.

Os Homem de antigamente eram poupados e minuciosos; amparava-os nisto a certeza de que a vida tem um fim e de que o dinheiro de algum lado vem. Desiludindo a Doutora Filomena Mónica, que me julgava um remanescente temporão da fidalguia minhota, os Homem foram sempre muito ciosos das suas economias – não porque passassem por sovinas, mas porque acreditavam na finitude das coisas e nos princípios da economia doméstica mais básica. Por um breve período, a Tia Benedita achou o dr. Salazar uma espécie de vidente quando anunciou que pretendia aplicar esses princípios às contas da Pátria para lhes acabar com o saldo negativo. O velho Doutor Homem, meu pai, tentou explicar-lhe que uma coisa eram os orçamentos do Estado e que outra eram os modos como as famílias educavam os seus filhos, ensinando-os a poupar os lápis e a barrar de manteiga apenas um dos lados do pão. Nesta matéria, o causídico achava que o antigo lente coimbrão não devia entrar na casa dos portugueses para lhes vigiar os defeitos.

Acontece que factos inocentes e anódinos como esse (o de espremer a pasta dentífrica pela base) são um sinal de ordem e de hábitos morigerados, uma espécie de marco geodésico das velhas virtudes de moderação na economia doméstica. Dona Elaine, a governanta (e salvadora permanente) do eremitério de Moledo, limita-se a servir o meu café de cevada sempre na mesma chávena, com receio de quebrar o hábito e de esbanjar a loiça da casa, da mesma forma que o meu avô escolhia sempre as mesmas botas para empreender as suas viagens ao longo do Douro, visitando os proprietários a quem administrava as quintas e anotava as colheitas. A sua intenção era dar um exemplo de economia dentro de casa e, ao mesmo tempo, mostrar a dois ou três cavalheiros do Pinhão e de Ribatua que a vida não estava para brincadeiras, pedindo-lhes que não se pusessem a fazer reformas de mobiliário antes das vindimas do próximo ano.

Pelo sim, pelo não, adverti a minha sobrinha, não vá ela ficar reaccionária antes de tempo.

in Domingo - Correio da Manhã - 28 Junho 2009

domingo, junho 21, 2009

Uma recordação de Benguela e Lobito

O Tio Henrique dera dado à grandiloquência dos militares. Dedicado ao seu velho oboé, com cujos acordes pretendia iniciar uma obra sinfónica que nunca chegou a compor – mas de que executava passagens imaginárias –, ele é um dos personagens destinado a confirmar senectude da família. Nos momentos mais solenes, à mesa do almoço ou à hora do chá, e recordando as campanhas de África em que participou, relembrando as paisagens de Angola, emocionava-se como se toda a sua vida tivesse sido emoldurada pela História. Mas a verdade é que a sua vida africana se limitara a cumprir missões de reconhecimento em redor de Benguela e do Lobito na qualidade de estratega de engenharia militar, o que não impediu que fosse devolvido ao Minho depois de tombar de um cavalo e de lhe ter sido diagnosticada malária. Antes de abandonar aquela geografia tórrida e poeirenta assistiu ainda às primeiras viagens do Caminho de Ferro de Benguela e ao escândalo do Banco de Angola e Metrópole. Nem a malária nem o pobre e maltratado oboé lhe diminuíram o gosto pelas grandes frases. Ele imaginava-se na restinga do Lobito, cavalgando no meio de uma nuvem de pó, e entoando a célebre frase que José Acúrcio das Neves colocara na boca de Dom Miguel: “Segui-me e nunca trilhareis outra estrada que não seja a da honra.”

Vindo de África e deixando para trás uma vida marcada pelas casernas e pelo brilho elegante das suas fardas e colarinhos engomados, o Tio Henrique recolheu-se à casa dos Arcos de Valdevez para se entregar à música, à agricultura e à vida doméstica. As veredas luminosas e pacatas do Minho não o faziam esquecer a vastidão dos planaltos ou das colinas africanas; e, diante das suas recordações de militar, venerando Norton de Matos ou Mouzinho, a comparação deixava-o prostrado, achando que o país estava ocupado por um bando de sicofantas ignorantes e tacanhos.

A Tia Benedita, já naqueles anos condenada a emprestar a sua voz para disciplinar as loucuras da família, não se resignou e tratava-o com respeito e condescendência, tentando chamá-lo à razão e salvar a família do gemido sensaborão e melancólico do oboé. Foi uma dura campanha, mas coroada de sucesso. O Tio Henrique desistiu de compor a sua obra sinfónica e, em troca, periodicamente, alguém se dispunha a cabecear, ensonado, enquanto o velho herói das pontes militares de Benguela narrava as suas aventuras ultramarinas. Ele seria, se o deixassem tomar a carreira das letras, um escritor perigoso, cheio de figuras de estilo e de tons épicos que deixariam Garrett humilhado a um canto. Cito Garrett por tratantice. A família detestava-o.

in Domingo - Correio da Manhã - 21 Junho 2009

domingo, junho 14, 2009

Visitação a Camilo e ao Portugal velho

Periodicamente, releio ‘A Brasileira de Prazins’ numa das velhas edições herdadas da ortografia antiga, encadernada na Rua Firmeza e transportada do Porto para Moledo com a minha mudança para esta casa onde tenho vivido os últimos vinte anos. O prazer que se retira de ler livros desses, já relidos e muito envelhecidos, tocados por humidades sazonais – nunca o consegui explicar e creio que qualquer explicação seria rebuscada. Limito-me a regressar às primeiras leituras, às primeiras páginas, às primeiras impressões. A minha sobrinha acha que Camilo Castelo Branco e, por imodéstia, eu próprio, somos os derradeiros sobreviventes do miguelismo nesta família. Ele, o suicida, pousado nas estantes; eu, sobrevivendo diante delas. A jovem esquerdista, mesmo tendo dobrada a idade das melhores personagens de Balzac, encontra uma melancolia inédita nesta resistência ao tempo. Ela vê em nós o resto de uma geração de aventureiros contemporâneos de amores contrariados e de aldeias que testemunharam tiroteios e os costumes do Portugal Velho – pela razão simples de que hoje em dia não há amores contrariados e ninguém sabe o que foi a Maria da Fonte. O Portugal Velho, por seu lado, foi sempre um pouco bandoleiro, controverso e violento. Há nesse retrato a memória ou o selo de uma certa grandeza que os manuais arrumam na categoria de simples velharia iconoclasta, mas que a Pátria aprendeu a desprezar com insistência e ignorância.

O drama do Zeferino das Lamelas (de ‘A Brasileira de Prazins’) merecia um estudo de época, mais do que a nossa comiseração. Armado de mosquete, alcoolizado, trágico, cavalgando pelas encostas do Lima ou do Arga, o pobre pedreiro famalicense arrasta consigo todas as indignidades dos derrotados – mais do que o desespero dos que estão condenados à morte. Naquele tempo morria-se valentemente, sucumbia-se sob um cheiro de pólvora e de sangue a coberto das noites escuras. Os heróis de Camilo são os últimos salteadores da História, antes do cosmopolitismo e da delicadeza dos endecassílabos constitucionais, compostos nas secretarias; têm a certeza de que nunca serão compreendidos ou absolvidos pelo seu anacronismo. São velhos; morrem, marcados pelas feridas de guerra ou pelas clavinas dos salteadores; ou raramente sobrevivem enterrados em bibliotecas que cheiram a rapé e a genebra. Tenho por eles uma secreta admiração de vencido e de companheiro de infortúnio. Nunca poderia ter sido como eles – faltou-me o estofo de herói e a coragem do aventureiro. Sou apenas um autodidacta do reaccionarismo.

in Domingo - Correio da Manhã - 14 Maio 2009

domingo, junho 07, 2009

Às portas do Verão, em Moledo

Em tempo de eleições, Moledo não vai bem com explicações sobre a Pátria – o iodo, essa molécula que cobre de prata as areias do Minho e que se respira como se fosse o único perfume local, suaviza os ressentimentos e transforma a História num romance cheio de afabilidades. O leitor está sem paciência; o Verão aproxima-se como nuns versos de Cesário, invadindo tudo, colorindo as hortas; apenas lhe falta o humor carregado das mimosas na antiga estrada de Viana. Em Junho, a família prepara a sua romaria anual até Ponte de Lima, depois de ter achado – há uns anos – que o calor de Agosto era demasiado inclemente para suportar a peregrinação. Trata-se de uma visita anual ao velho casarão de granitos e heras escuras, onde os Homem de outros séculos viveram períodos de felicidade e irrelevância, ignorando a imprensa, a internet, a educação sexual nas escolas e o constitucionalismo. Vivi parte desses tempos, nos Verões da infância, entre os seus muros que tombaram e foram reerguidos, e tombaram de novo, e de novo foram levantados.

Passeando pelos seus corredores, recordo aquela luz ténue, filtrada por reposteiros que impediam a entrada do Verão pleno, total e do seu calor minhoto. Bem vistas as coisas, sou o único testemunho desse tempo que terminou sem glória e sem arrebatamento, discretamente, num fim anunciado pelo andamento do mundo.

Também é verdade que o casarão limiano não viveu apenas esses “períodos de felicidade”. Houve, como em todas as famílias sem história, tragédias (pequenas e circunspectas, recatadas), agonias com e sem amargura, despedidas tristes, memórias inconvenientes – de tudo um pouco. Também é ali que continua dependurado o retrato de Dom Miguel, testemunhando uma rara e incompreensível fidelidade que me enche de melancolia e de orgulho: a melancolia que vem da recordação e o orgulho por confirmar que a família não esqueceu as suas alianças. Da crueldade da política restou apenas o retrato do Príncipe, que a Tia Benedita considerava o mais belo dos portugueses – um excesso que se desculpa numa senhora que se recusava a viajar até Tuy. Tudo se desculpa à nostalgia, no fim de contas, sobretudo nesta temporada em que o Verão vai e vem, ameaça e alivia, empurrado pelo vento da Galiza, que desce de Santa Tecla como um perfume preguiçoso.

Ao entardecer, durante o meu passeio diário (por receita médica), imagino Dona Ester, minha mãe, largando um grupo de crianças no areal tépido banhado pelo mar. Oiço uma gritaria. Verdadeiramente, regresso à minha vida, como ela nunca deixou de ser.

in Domingo - Correio da Manhã - 7 Junho 2009