sábado, julho 31, 2010

Orgulho e preconceito como sempre

Periodicamente, quando o Verão chega em pleno e a casa se enche das passadas dos meus sobrinhos, vou à estante procurar algum recolhimento. Os romances do passado acolhem-me. Acolheram o velho Doutor Homem, meu pai, e providenciaram-lhe a paz que o encaminhou para a felicidade. Acolheram-me a mim próprio, em outras épocas, e trouxeram-me a ambição de verificar que o mundo correspondia a certas páginas, como uma espécie de retrato das cidades que não visitei e das vidas que não vivi. Mas eram graus de acolhimento diferentes. O velho Doutor Homem, meu pai, partilhou com esses livros um desejo de frugalidade que só com o tempo pude entender mais inteiramente: os livros serviam-lhe para se isolar do resto do mundo, criando uma barreira contra o ruído e as paixões que já não podia – nem devia – viver. A cada um os seus mistérios.

Os meus sobrinhos não assistem a este debate. Limitam-se a acordar tarde, a percorrer a pé o caminho até à praia, a regressar à hora que lhes é mais conveniente, a jantar no terraço – aproveitando a onda de calor destes dias – e a sorrir às recordações de um velho, quando entramos em diálogo: Maria Luísa, que chegou mais cedo este ano, antes da sua habitual temporada de Agosto; Pedro, que resplandece de alegria quando a namorada Isabelle, a pequena holandesa, se serve de vinho; Luís, que me explica como será a economia do futuro e como a literatura pode vir a ser um bem dispensável; Maria Leonor, que discute com Dona Elaine acerca da quantidade de açúcar a mais no pudim. O retrato compõe-se. Há um aroma de eucalipto morno e uma finíssima neblina ao princípio da noite, empurrada pelo vento da Galiza.

E os livros que já acolheram o velho Doutor Homem, meu pai, acolhem-me agora como uma lembrança do tempo em que os descobri como uma promessa de redenção e de sabedoria. Não me trouxeram nem uma coisa nem outra. Às vezes, só orgulho e preconceito; de outras vezes, uma melancolia que eu conheci como se fosse o outro nome da felicidade plena; e em certos momentos um prazer que só se completa quando encontramos outro leitor que esperava pela mesma sensação. Mas os romances do passado, de “Orgulho e Preconceito” ao romance dos romances, “Tristram Shandy”, não precisam de sensações: eles transportam consigo quase tudo o que precisávamos. Maria Luísa não concorda. Ela acha que há coisas novas desde “O Monte dos Vendavais” ou que “Guerra e Paz” devia ser ligeiramente encurtado. Pode ser. O crepúsculo de Moledo também ocorre a horas diferentes.

in Domingo - Correio da Manhã - 31.07.2010

domingo, julho 25, 2010

Um promontório diante do mar

De tempos a tempos, Moledo parece o centro do mundo, o que a distrai da sua característica principal – que é ser um lugar afastado do mundo. Foi com esse argumento que, há cerca de vinte anos, escolhi viver entre pinhais e dunas. Mas uma interrupção vem sempre a calhar. Isso acontece semanalmente, aos almoços familiares de domingo, cada vez menos frequentados; ou quando “a pequena holandesa”, Isabelle, namorada do meu sobrinho Pedro, decide visitar as nossas províncias, abandonando temporariamente a Frísia; ou em pleno Verão, durante a “época balnear”, quando uns milhares (como sou avesso a estatísticas, situo o número em centenas) de banhistas concorrem para o areal branco tomando os benefícios do derradeiro e mais saudável iodo do nosso velho hemisfério.

Os almoços de domingo são serenos e servem para exercitar um dos dons mais apreciados da família, a má-língua – um eufemismo para designar a forma como, oficialmente, o mundo é observado deste promontório. As visitas de Isabelle são uma invasão de beleza que ilumina as sombras das árvores; ela arrasta consigo a ingenuidade dos civilizados que se admiram por haver pessoas que vivem na desordem e sem pensarem no castigo final depois de uma vida que incluiu duas refeições diárias de faca e garfo. Quanto à “época balnear”, ela consiste – no fundo – numa espécie de ritual que, ano após ano, prolonga a existência de Moledo como um território afastado do mundo. Explica-se isto pela temperatura das suas águas. As minhas irmãs (que frequentaram as Caraíbas quando as viagens eram caras, e que agora procuram o exotismo a preços moderados nos trópicos do Oriente), acreditam que em Moledo nasce uma corrente árctica que congela periodicamente o plâncton do fundo do mar. Mas não é verdade: a praia de Moledo apenas poderia ser frequentada com prescrição médica adequada.

De tempos a tempos recebo a visita de Dona Celina, que cuida admiravelmente das bibliotecas do concelho – e a quem mais recorro depois de o dr. Barreto Nunes se ter retirado da sua, em Braga. Como todas as pessoas cultas e românticas, a dra. Celina (que é minha fonte de informação regular sobre as novidades literárias das suas estantes) aprecia em Moledo a beleza que os escritores se têm esquecido de relembrar. No mês passado tentou convencer-me a escrever esse romance de Moledo. Respondi que não era nem podia ser romancista; falta-me a “habilidade” para contar uma história (não mencionei a idade). Ela sorriu. Também ela compreendeu que a preguiça joga a meu favor.

in Domingo - Correio da Manhã - 25 Julho 2010

domingo, julho 18, 2010

O Verão de Moledo e a passagem do tempo

Na semana passada, a minha sobrinha Maria Luísa veio de Braga mais cedo, antecipando o fim-de-semana com o argumento de que "tinha coisas para fazer". Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, que alia à sabedoria das minhotas de Roboreda a fina perspicácia que não esqueceu do Brasil (onde esteve emigrante), alvitrou que isso se deveria "aos ares do Verão", ainda que a desculpa oficial fosse a de visitar as feiras de Cerveira e de Vila Praia de Âncora.

Para acompanhar o Verão e saudar a época balnear, as feiras de Cerveira, de Âncora e de Caminha são uma intromissão festiva que sempre se saudou na família. Eu próprio sou arrastado para o meio das quinquilharias, cheiros de doces e grelhados, artefactos de cozinha e ruídos de romaria. No ano passado, os meus sobrinhos presentearam-me com uma harmónica, verdadeira imitação das antigas Hohner Chromonica, uma preciosidade que abundava no Minho, à mistura com os cavaquinhos, os acordeões e as concertinas da minha província (e que competiam com as gaitas-de-foles da outra margem do rio Minho). Este ano coube-me apenas apreciar o entardecer e acompanhar Maria Luísa, que esta semana completava quarenta e quatro anos. Trata-se da idade perfeita. Na minha idade, limito--me a contemplar – reflectida seus olhos – a passagem do Verão, a passagem do tempo, e aquela melancolia das coisas que só têm sentido porque não as pudemos amar como devíamos.

Maria Luísa sabe andar de braço dado, um costume que vem do tempo do pudor, e isso diz tudo. Mencionei-lhe, por isso, "os ares do Verão", como se eu pudesse entender o que as mulheres pensam da sua vida. Não posso. Frequentemente imagino como teria sido a minha vida se não tivesse fugido – às vezes a sete pés – dos perigos que a podiam tornar cobiçada ou cheia de episódios memoráveis. Não foi, nunca, nem uma coisa nem outra. Sou apenas um espião que há vinte anos toma o pequeno-almoço à mesma hora e festeja a vida dos que o rodeiam. Depois, lembrando-me que o fresco nocturno aconselha um casaco, Maria Luísa convidou-me para tomar "um café" numa das esplanadas da praia. Regressei suavemente a um tempo que já não recordava, cheio de vozes, cheio de coisas amáveis, gestos de concordância e conversas que prolongavam a nossa vida. Mas recordar é um entretenimento de velhos. Aos quarenta e quatro anos, uma senhora recomeça a viver como se ouvisse esse som das harmónicas do meu tempo, jovial e adolescente. Aos quarenta e quatro anos eu tinha uma inclinação pelas mesmas coisas que hoje me comovem. O tempo passou depressa.

in Domingo - Correio da Manhã - 18 Julho 2010

domingo, julho 11, 2010

Lembranças sobre a namorada russa

A distância faz grandes coisas. O facto de o meu tio Alberto ter mantido durante quase vinte anos uma “relação romântica” (a expressão era dele) com a sua “namorada russa” era justificado pela família com a distância que ia de Ponte de Lima até às margens do Cáspio. Chamar-lhe “a namorada russa” era um atrevimento maldoso; Alexandra era persa, realmente – mas a sua família abandonou a Rússia czarista depois do bolchevismo. Conheceram-se em Paris, onde no final dos anos quarenta se conhecia toda a gente, e, até ao final da vida de Alexandra – que está sepultada em Genebra –, creio que o Tio Alberto não passou um dia sem pensar no retrato que guardava no escritório desarrumado da sua casa de S. Pedro de Arcos: um rosto doce com olhos escuros iluminando a moldura de uns cabelos penteados como se usava na época em que se conheceram.

As viagens do Tio Alberto eram sempre misteriosas e, oficialmente, desconhecidas no casarão dos Homem. A Tia Benedita, matriarca da família, reprovava silenciosamente a natureza dessa “relação romântica”, termo que ela considerava absurdo e que caberia apenas na biografia de um autor de sonetos – um modelo literário que a Senhora atribuía à geração de vates do liberalismo, certamente por achar que catorze versos eram um excesso, tão palavroso e inútil como cheio de retórica lamechas. Evidentemente que havia outro motivo; a Tia Benedita considerava que uma mulher estrangeira sempre seria mais vulnerável ao bolchevismo, ao adultério, à incompetência em matéria doméstica e à indiferença em matéria religiosa.

Seja como for, está ainda por explicar o motivo que impediu o casamento do Tio Alberto com a sua namorada russa, que, afinal, era persa. A Tia Benedita achava que, para lá dos perigos normais, o Tio Alberto era um devasso e não passava, afinal, de um homem que queria comer ostras em Ribadeo, enxamear os Verões com viagens à Galiza e escusar-se aos deveres familiares. Sobre tudo isso, havia a distância. Por que não vinha “a russa” até aos vinhedos do Minho, onde ficava o melhor de Portugal?

O velho Doutor Homem, meu pai, pelo contrário, achava que a distância entre o S. Pedro de Arcos e o Cáspio era um bálsamo para a tentação libertina de um solteirão minhoto, a espécie mais perigosa dos predadores masculinos. E a vida seguiu o seu curso no meio desta disputa. Em Setembro, mal terminava a sua temporada de Ponte de Lima, o Tio Alberto tomava o comboio para Paris, onde chegava como um cavalheiro do Grande Mundo. Regressava para o fim do Natal, e trabalhava até à Páscoa. Não sei como comunicavam um com o outro. Mas comunicavam maravilhosamente.

in Domingo - Correio da Manhã - 11 Julho 2010

segunda-feira, julho 05, 2010

Uma gargalhada de Julho e Agosto

Naquele Verão os meus irmãos convenceram-me a partilhar com eles o aluguer de um barco. Foi três anos a seguir ao fim da Guerra, era um Verão quente, agitado – e eu tinha 25 anos, aquilo que a Tia Benedita chamava “a flor da idade sem juízo”. Ela nunca perdoou as manobras dos três rapazes que atravessavam o rio Minho e se aproximavam das ilhas da Boega e dos Amores ora como sósias de Huckleberry Finn, ora como dândis que tentavam impressionar os povos ribeirinhos. Refiro-me aos povos ribeirinhos para não mencionar as jovens que habitualmente passavam férias em Vila Nova de Cerveira.

Nós éramos pouco dados a bucolismos. Atravessar o rio num barco de bandeira portuguesa era um atrevimento diplomático que punha em risco as sestas tardias da Guardia Civil da margem direita, em La Guardia, que podiam confundir-nos com um agrupamento de contrabandistas de Gondarém ou de Reboreda. E, estando fora de causa um desembarque nos areais de Camposancos para reivindicar a posse dos pinhais galegos e celtas de Santa Tecla, limitávamo-nos a subir e descer o rio como piratas locais, usando bonés de marinheiros comprados na feira de Leça.

Na semana passada, a minha sobrinha Maria Luísa levou-me, de carro, a passear pelos caminhos verdes que cruzam o Minho e a Galiza. Recordei-lhe esta história de desafio à modorra estival, e que terminou quando as primeiras névoas de Outono conseguiam ocultar a Ínsua e transformar o mar oceano num prolongamento das escarpas da Costa da Morte. O mundo do rio era estranho e profundo, um mapa limitado por margens que não nos pertenciam. Ao leme do pequeno barco – que nos custou as magras economias da época –, sentíamo-nos como actores italianos observados por damas dependuradas dos jardins. E tudo foi uma interrupção no envelhecimento a que estávamos condenados (eu mais do que os meus irmãos ou os amigos que ocasionalmente entravam no curto convés).

Ao contrário do que pensa Maria Luísa, sessenta anos depois não tenho nada para recordar. As coisas passaram-se desta ou daquela maneira. Conservo, passados estes anos, a recordação de uma gargalhada jovem e romântica – por quem me apaixonei, como devia, e por quem sofri bastante, mais tarde, como estava escrito. Havia uma sombra entre os choupos do rio. Havia um Verão, fatal como todos, perigoso como os restantes, luminoso como teria de ser um Verão passados todos estes anos, cheios de boa e de má literatura, de gripes e de almoços familiares. A minha sobrinha descobriu, com isso, que o mundo não começou agora e que há sessenta anos o rio Minho era um cenário para filmes de Felini ou, com menos interesse, de um Billy Wilder sem música. Se tivéssemos parado no tempo e aguardado alguns anos, todos nos julgaríamos sósias de Marcelo Mastroianni procurando – cada um de nós – a sua musa. Mas seria, afinal, a mesma recordação: tempo que passa, casas cheias de Verão, gargalhadas que só existem em Julho e Agosto, uma breve ideia de felicidade.

Nem na altura escrevi um verso ou uma palavra de amor. O que veio, chegou e passou. O barco ancorou em Caminha depois de uma última viagem, num primeiro domingo de Setembro nublado e tépido. Isabelle, a pequena holandesa, namorada do meu sobrinho Pedro, chegou ontem da sua Frísia natal, onde se ocupa de biologia e oceanografia. Dona Elaine, a governanta de Moledo, anotou que este ano temos menos um quarto ocupado porque um dos meus sobrinhos avisou que tem trabalho na Madeira. Maria Luísa vem mais cedo, com os filhos. Este ano não vai ao estrangeiro. Ela menciona “a crise”, mas suspeito que também ela se lembra de uma gargalhada de Julho e Agosto.

in Domingo - Correio da Manhã - 4 Julho 2010