sábado, abril 29, 2006

O prazer de escrever em Moledo

Eu tenho, descobri nos meus anos crepusculares, prazer em escrever. Escrevo à mão, caro leitor, É uma coisa de velho - hoje, só os velhos pensam que a caligrafia confere uma certa exclusi­vidade ao que se escreve. No entanto, mais do que o efeito de escrever (ler as crónicas depois impressas), que já é vaidade bastante, agrada-me o acontecimento em si e o seu rasto de pequena glória familiar: as folhas de papel, a caneta Parker que herdei do velho doutor Homem (meu pai) e a letra desenhada. Estas coisas já não fazem parte do nosso tempo. A minha sobrinha insiste que eu devia registar o meu nome na brilhante geração das tecnologias, comprando um computador e aprendendo a lidar com os fabulosos segredos da informática, recebendo as suas cartas pela Internet. A sugestão é feita com a regularidade de um bom pêndulo e acontece de cada vez que uma das minhas crónicas é comentada - o que significa que a família "se ressentiu" ou, como ri um dos meus sobrinhos, "foi sacudida". Os meus irmãos não compreendem como puderam albergar, distraídos, tamanha vaidade entre paredes. Mas coisas destas vêm de onde menos se espera.

O prazer, de resto, é uma das ilusões que mais nos devia preo­cupar. Não por ser uma ilusão, coisa de que vivemos bastante, mas porque esgota tudo à sua volta, transformando em deserto árido uma existência que podia estar destinada a dar frutos. Não é, como já disse antes, o meu caso - um exemplo de egoísmo que encaixa relativamente bem no panorama de misantropia moderada dos Homem de hoje. As melhores coisas da nossa vida, os melhores exemplos do que pudemos fazer, não nascem do prazer mas da abnegação, do esforço e, em muitos casos, do sofrimento. Evidentemente que não há grande virtude no sofrimento; também ele é uma espécie de moeda de troca nesse grande sistema banca no, que é o da moral, em busca de recompensa ou de reparação pelos males passados. Acresce ainda que os juros do sofrimento não são satisfatórios nem felizes, antes resultam naquela espécie de ressentimento experimentado pelos que nunca viveram a plenitude da pequena alegria, a alegria da minúscula vitória sobre o destino.

O velho doutor Homem, meu pai, temia ser confidente de pessoas que tivessem sofrido para além de certo limite - com o argumento de que não era possível garantir que tamanha dose de sofrimento fosse verdadeira num mundo que tem gosto em maravilhar-se com o riso dos alarves. Penso, hoje, que ele teve sorte em não ver tele­visão. Ao contrário do que pensam certas pessoas bem-educadas, mas desajustadas em relação ao que se passa no mundo, a tele­visão não pode ser de outra maneira. O riso dos alarves conquistou o mundo, espalhou-se por todos os cantos como um gigantesco aparelho de televisão - e fala de prazer, como uma exigência que tem ares de figurar nas certidões de nascimento ou garantida como o direito de voto.

Lembro-me, por isso, da velha e ma­nhosa sabedoria dos Homem, quando calha estarem entretidos em comen­tários sobre a vida alheia (uma dis­tracção só permitida paredes dentro e no recato da sala de jantar ou na varan­da do velho casarão de Ponte de Lima), e da severa advertência patriarcal diante de juízos sobre adultérios, infidelidades, questões amorosas e outras falhas da intimidade: "Disso não se fala, é com cada um." A ideia é ge­nerosa, mas também defensiva.

A família tem um registo satisfatório de irregularidades nesta matéria. Conta-se que um tio-avô dos Arcos de Valdevez raptou uma noiva à porta da igreja para depois se casar com ela em Espanha. Duas ou três presenças dos Homem em Coimbra, com a arredia finalidade de estudar leis, garantiram um registo de aven­turas que, se não foram "interessantes", tiveram pelo menos o seu picante. Só a tia Benedita, que rezava todos os dias e temia o regresso do doutor Afonso Costa (para fechar as igrejas do Minho), escapa incólume a essa genealogia de pequenos incidentes. O melhor remédio para conter o riso alarve e os moralistas de ocasião é relembrar-lhes escândalos próprios. Essa pequena chan­tagem é de uma extraordinária eficácia. E é por isso que eu tenho prazer em escrever, descobri agora. Não há vaidade que não venha parar a Moledo.

in Revista Notícias Sábado - 29 Abril 2006

sábado, abril 22, 2006

O sentido das coisas

A Páscoa é o apogeu da minha Primavera. Não o zénite, apenas o apogeu, que o substitui com vantagem. Com o tempo, a época associou-se a um rito pagão ligado ao clima, à meteorologia, às variações botânicas, ao ritmo das estacões. Pouco da Páscoa contemporânea recorda os hebreus atravessando o deserto depois dos padecimentos em terra estrangeira; e mesmo aquele Cristo, vagamente envolto no sangue da sua tragédia, não é ícone senão de si mesmo. E sendo isto absolutamente verdade, é também bom reconhecer que assinalamos o Natal independentemente do próprio Natal.

O velho doutor Homem (meu pai) gostava de relembrar, a propósito dos assuntos mais diversos, que nem tudo tem de ter sen­tido na nossa vida; esta afirmação causaria danos fatais nos espíritos modernos, habituados a terem explicações para quase tudo. Mas, felizmente, o velho advogado e bibliómano não chegou a ouvir os psicanalistas da nova geração nem assistiu a nenhuma arenga do dr. Loucã. A minha sobrinha Maria Luísa, que vota no Bloco de Esquerda, acha graça ao ar professoral do cavalheiro e garante que, se é para ser professor, então que seja um destes, convencido de que estudou a lição e de que não pode senão ministrá-la a um auditório de eleitores. Esta forma quase absurda de positivismo enternece-me. Lembro-me do optimismo de cavalheiros de outrora, do demagogo Afonso Costa à alegria suspeita de António Ferro, e reconheço que os sinais se mantêm - a certeza absoluta, um grau elevado de infalibidade, o riso sobre as opiniões que ou não entende ou não Ihe chegam à altitude do seu magnifico cérebro, conservado pelas leituras dos mestres e pela subserviência dos seguidores.

Adiante. Nessa matéria, os Homem, habituados as vicissitudes da história e aos obscuros túneis do conformismo, ao refúgio em Ponte de Lima ou a este eremitério de Moledo, recordarão para sempre as palavras de D. Pedro, triunfantes e cheias de esclarecimento: "Não me obrigueis a libertar-vos!" O meu irmão Raul, que tem acessos de boa disposição, chama-lhe "o outro", ao vencedor da guerra (ele não reconhece a existência de um lugar chamado Évora Monte), e continua a achar indigno que se mantenha o retrato do senhor Dom Miguel abandonado àquele rigor granítico do húmido casarão de Ponte de Lima - mas a família tem uma dívida de honra para com a memória da Tia Benedita (que apreciava bastante uma irresistível tanto quanta invisível beleza do príncipe) e não arreda pé. De resto, frequentemente assisto a discussões pacificas sobre o sen­tido que as coisas têm e, sobretudo, acerca da falta de sentido de outras, mais ou menos importantes.

Na Sexta-Feira de Páscoa, Dona Elaine providencia a continuação do hábito de não se comer carne cá em casa, e ela própria prepara o pão ázimo, que é uma tradição secular dos Homem durante o fim-de-semana pascal. Não sei se isso tem sentido e nunca tive disposição ou falta de lucidez suficiente para discutir. Limito-me a aceitar e a considerar que há uma razão para as coisas serem assim. No meu íntimo, quando, nesta idade, e neste mês, fumo um dos meus três meios charutos anuais (um no almoço de Páscoa, outro no meu aniversário e outro pelo Natal), também não entendo essa tradição. O velho doutor Homem, meu pai, foi um fumador aplicado e honestíssimo, fechando-se na biblioteca para aspirar melhor as nuvens de fumo das suas cigarrilhas de Espanha, que Ihe chegavam por gentileza do melhor contrabandista de "ultra-marinos" de La Coruña e iam bem com a organização meticulosa da sua bibliote­ca. O dr. Cunha Leal, quando ali esteve exilado, também as fumou por indicação do velho doutor Homem, meu pai, que não era um dos seus correligionários, mas que foi visitá-lo com o pretexto de passar em La Guardia para comer ostras, dado a Primavera ir avançada. Eu nunca fui um fumador, salvo esses três charutos anuais que nem me engrandeciam o paladar nem me elevavam a pequenez espiritual. Insisto que esses três charutos não tem sentido. A falar verdade, não os fumo. Eles constituem um humaníssimo hábito que me transporta ao tempo em que a vida tinha sentido. Ou não tinha - mas isso não era tão importante como hoje.

in Revista Notícias Sábado - 22 Abril 2006

sábado, abril 15, 2006

O que deve ser um homem

Não são os homens quem melhor pode definir o que deve e como deve ser um homem. Falar da ética do cavalheirismo é perigoso e inútil, simultaneamente - pode confundir-se com um catálogo de rituais sobre o comportamento em sociedade, o modo como se deve abrir uma porta, a hierarquia dos cumprimentos, a distribuição dos lugares a mesa, a lista de temas de conversa durante o almoço de Páscoa, a roupa que se deve levar a um funeral. Dona Elaine, que já faz parte da família desde que passou a administrar as minhas dietas, o horário dos meus medicamentos bem como a marcação de quartos para cada Verão de Moledo, entende desses assuntos e avisa-me: "O senhor doutor veja lá se desta vez não esquece o nome dos amigos do seu irmão. Eles vêm almoçar no domingo."

A destreza social diminui bastante com a idade e nunca se sabe o que se pode esperar de um velho, a quem se perdoam a falta de memória, os achaques de Primavera ou as idiossincrasias na política ou na literatura. Falo de literatura apenas por falar - na verdade, pouco se comenta de literatura à mesa hoje em dia. A mim, mencionam-me vagamente uns nomes de novos autores, mas o defeito da ignorância é um dos meus pecados. Arrependo-me com seriedade e escuto; desconheço as desventuras do romance contemporâneo, a minha preguiça vai sendo um Adamastor que engole todo e qual­quer esforço. A minha sobrinha, que depenica nas minhas estantes à procura de literatura para as noites bracarenses, é exigente na matéria, o que me comove com alguma largueza. Dou-me a esse luxo com ela, embora dispense saber como se preenchem de livros as noites de Braga - o que me não contam, eu não sei; o que não sei, não me assusta; o que não me assusta, tem uma vaga existência para lá de Moledo e das suas tardes amenas de Abril.

Um cavalheiro devia, portanto, remeter-se aos seus assuntos. Não porque a curiosidade seja essencialmente uma prerrogativa feminina, mas porque os assuntos de cavalheiros andam ligeiramente descuidados. Escrevo-o com pena, naturalmente; mas o leitor sabe que o meu tempo é ainda o do naufrágio do Titanic. Quando minha sobrinha Maria Luísa se queixa, com aquele sarcasmo feito de melancolias disfarçadas, sobre "já não haver homens", eu remeto-me à memória, que é um refúgio para incapazes ou para convalescentes. Também já ouvi murmurar sobre "já não haver senhoras", mas é assunto que me não diz respeito. Antigamente, queixei-me varias vezes sobre essa decadência, mas o tempo foi passando. Na verdade, os anos correram, às minhas queixas sobre o funcionamento dos rins associaram-se outras sobre as coronárias e o reumatismo - e notei que as pessoas continuavam a chegar e a partir, visitavam Moledo, ficavam para a praia, reproduziam-se com mais ou menos alegria, mudavam as suas leituras, vestiam-se de forma mais ou menos arrebatada.

Mas é isso: os anos correram, o tempo foi passando. São coisas que não se alteram. Penso, hoje, que educámos as novas gerações para que elas fossem mais felizes e, provavelmente, mais apresentáveis. A avaliar pelo retrato de conjunto, não conseguimos nem uma coisa nem outra. Não piorámos substancialmente, mas ficámos com mais dúvidas.
Por isso, quando se murmura sobre o cavalheirismo, por exemplo, eu interrogo-me sobre se pode ser assim. Ou seja, sobre se pode haver cavalhei­rismo numa época em que um cavalheiro pode estar destinado a comportar-se como uma espécie de declamador do 'Ecclesiastes', lamentando a corrupção das coisas, ou como um lunático incompreendido. Esse era, aliás, o problema de Dom Quixote. Mas o tresloucado da Mancha fora um militar, habituado a códigos e a prerrogativas, aos sacrifícios corporais e à abnegação; nem morigerado pela presença de Sancho ele nos desiludiu diante das adversidades ou da ameaça da morte. Mas isso era literatura. Literatura apenas. Folhas que se soltam com o vento. Hoje, as únicas folhas a que presto atenção especial, leio-as à lupa, pois vêm no interior das caixas dos medicamentos. São elas que comandam o meu tempo. O resto, como pensaria qualquer razoável egoísta a prestar contas à eternidade, acaba por ser uma distracção.

in Revista Notícias Sábado - 15 Abril 2006

sábado, abril 08, 2006

Confissões escusadas

Foi a minha mãe que me impediu de cair nos abismos da infelicidade. A frase, vista assim, pode parecer arrancada a uma folha de Camilo, em ânsias de plágio. Mas não é: tratava-se mesmo de infelicidade. Dona Ester tratou os filhos com um zelo que, sendo minucioso e cheio de princípios, não a aproximava das velhas mães de família de cenho carregado e com a sensação de transportarem o peso de uma elevada missão - também ela sabia que a vida era como era. O velho doutor Homem (meu pai), sem nunca o mencionar, mostrou também que, num tempo em que as esposas eram preferencialmente mães e sentinelas da família, a sua mulher era, também, nossa mãe - e nunca o contrário; a ordem dos termos foi sempre essencial. Quanto ao estatuto de sentinela, estava-lhe naturalmente dificultado, uma vez que a vida dos outros raramente nos interessava. A famosa misantropia dos Homem nem com juízos se metia onde não era chamada - a nossa política era o abstencionismo em matéria moral.

Portanto, quando andávamos de carro, um velho Plymouth preto, sobretudo para ver a Apúlia ou para conferir que o mar da Granja era diferente do de Biarritz, os filhos iam atrás, relegados ao seu lugar natural, amontoados e massacrando a roupa. O velho doutor Homem (meu pai), que sobreviveu doze anos ao desaparecimento da minha mãe, nunca fez nada que pudesse alterar essa recordação; viveu a sua dor em silêncio. Se rara­mente refiro a minha mãe nestas crónicas, é por uma espécie de pudor que a protege do tempo e que me salva, a mim, da poeira que se acumula sobre a memória.

Seja como for, foi a minha mãe que me salvou dos abismos da infelicidade, na altura em que a quebra de um namoro impediu o meu casamento. Essas coisas eram sérias e deixavam marca. Mas Dona Ester sabia que a doença da paixão era uma forma baixa de orgulho e de prolongamento da adolescência; por isso, limitou-se a um trabalho em três etapas: primeiro, recomendando-me que esquecesse o assunto, porque um cavalheiro não se deixa arrastar em minudências; em segundo lugar, que já tinha idade suficiente para trabalhar longe de casa; finalmente, convenceu o velho doutor Homem, meu pai, a (uma vez que se aproximava o Verão) enviar-me para o Estoril durante um mês, ou dois, na presunção de que aos vinte e oito anos eu já poderia conhecer o lado mais mundano da família. Ela sabia que a frivolidade poderia ser o melhor lenitivo para um coração em destroços; nada que surpreendesse os Homem, famosos pela sua frieza e por um cepticismo que os poupava a comoções para lá do razoável. No meu tempo chorava-se bastante, muito mais do que agora - ou as lagrimas notavam-se mais, o que é um problema de perspectiva. Regressando ao tema: se o Tamariz (e a sua praia, e os seus estrangeiros, e os seus crepúsculos suaves sem as neblinas do Minho) me salvou da melancolia amorosa e portuense durante esses dois meses de estio, o trabalho do escritório completou a tarefa. Ao fim de uma temporada deu como concluída a minha aprendizagem definitiva nessa matéria — Dona Ester respirava de alívio por não me ter querido dentro de casa, penando de amor.

Hoje, recordando esse momento, sei que a infelicidade a que me refiro também poderia ter sido o começo de uma longa busca pelo casa­mento perfeito, que é outra ocupação destinada a quebrar o tédio ou a completar a condição do nosso destino, prolongando a família, o património e a história. Quis o meu destino, porém, que eu acabasse por me render ao vício do celibato, o que nunca me impediu de experimentar a luxúria ou a paixão; como qualquer ser humano, fui várias vezes agradavelmente vencido pelo instinto — mas uma resistência qualquer, além da minha leviandade, impediu-me de ser mais consequente. Minha sobrinha Maria Luísa tem suspeitas sobre o assunto. Ela pensa que estas confissões escusadas escondem alguma melancolia, cartas escondidas numa gaveta, fotografias gastas pela penumbra ou até um segredo de família. Quanto a melan­colia, não nego. Mas tudo o resto, se ainda existe, já perdeu a cor. Dona Ester acreditava que um cavalheiro não se perde em minudências.

in Revista Notícias Sábado - 8 Abril 2006

sábado, abril 01, 2006

Coisas leves

Uma das minhas irmãs (somos três irmãos e duas irmãs) perguntou-me por que razão eu não escrevia coisas mais leves sobre assuntos mais leves. A pergunta foi feita já depois de almoço, naquele ambiente de gratidão quase metafísica que os velhos ainda sabem apreciar depois do almoço dos domingos. Os Homem gostam dos almoços de domingo. Na verdade, apreciamos muito a má-língua, sugere a minha sobrinha Maria Luísa, que vem sozinha com os dois filhos ao fim da manhã e arranca sozinha com os dois filhos ao fim da tarde – o seu segundo divórcio não bastou para nos comover, comprovando a conhecida frieza dos Homem, que acaba por ser uma boa coisa: por um lado, a minha irmã não tem compaixão por um pobre velho vaidoso muito afeito a questões de estilo; por outro, não entoamos loas à moral. Ambas as coisas são verdadeiras.

A compaixão e comoção andam juntas, mas não entram muito pela porta do eremitério de Moledo. Já contei ao leitor o triste episódio dos monárquicos de 1911, que vieram a Ponte de Lima pedir fundos para as campanhas militares – e foram mal recebidos. Durante anos, depois de tomar conhecimento das conversações, alimentei em vão a esperança de que a História voltasse um pouco atrás para corrigir a frieza espectral da família, que imagino recolhida no casarão de granitos frios e indiferente à sorte das incursões que, em nome de Sua Majestade, iam sendo derrotadas em Vinhais e espezinhadas em Chaves às mãos do jovem Ribeiro de Carvalho. Em vão. Os vencidos da História vão perdendo o seu direito à posteridade e a eventuais correcções no destino. Reconheço que havia um certo heroísmo em Paiva Couceiro, à mistura com o ideal de aventura e de honra militar. Mas o destino estava traçado pelo optimismo da República, que trabalhava a favor do dr. Afonso Costa e dos demagogos da época. Eventuais arrependimentos (e foram muitos) chegaram tarde demais, como considerava profeticamente o velho doutor Homem (meu pai), que em tudo via um pretexto para se indignar contra o dr. Salazar.

Viu o leitor, espero, como se decidiu esta crónica: comecei por invocar a minha irmã, passei por cima da má-língua dos Homem, evocando o segundo divórcio da minha sobrinha, a fim de chegar ao dr. Salazar depois de lembrar o mau-feitio dos Homem (que por vezes se pode confundir com ingratidão diante da História). Esta é a conversa de um velho, no fim de contas: passa-se de um assunto a outro porque não há outro remédio, não há outro caminho. Uma memória lembra outra. Transformado numa instituição veneranda, anterior ao Titanic e à época das auto-estradas, limito-me hoje a construir pontes que unam todas as várias margens do meu delta particular. Como poderia eu escrever sobre coisas leves?

A verdade é que não conheço coisas mais leves do que estas. Recordar. Lembrar os livros antigos. As chegadas e partidas do meu avô, na velha estação de São Bento. A correspondência ordenada e meticulosamente classificada do velho Doutor Homem, meu pai. Uma paixão antiga. A questão não está nas coisas leves, mas na leveza com que se viveu uma vida.
A minha sobrinha, nem de propósito, ficou comovida com esta revelação de uma paixão antiga. Ela gosta de histórias impossíveis. Nesta idade, um velho pode contar o que aconteceu há quarenta ou cinquenta anos sem correr o risco de encontrar as personagens dos “Mistérios de Fafe”, onde Camilo contou amores impossíveis. Talvez na próxima semana me atreva a descer o pano sobre uma recordação desse género. “Coisas leves”, não é disso que todos gostamos, pelo menos de vez em quando?

in Revista Notícias Sábado - 1 Abril 2006