Quadro décadas de discrição e mistério
O
Tio Alfredo Augusto regressou a Portugal em Setembro de 1970 vindo do Rio de
Janeiro. Tinha sessenta e cinco anos e era jovem o suficiente para acreditar
que tinha ainda tempo para gozar alguns anos na quinta que comprara nos
arredores de Afife, voltada para o mar, protegida por pinheiros e gigantescas
sebes centenárias. Vivera a maior parte dos seus quarenta anos brasileiros no
Pernambuco – mas, antes de regressar ao Minho, como o faziam os personagens de
Camilo, quis passar uma temporada em Copacabana. Não para “gozar a vida” mas
para pôr os papéis em ordem. Na verdade, como já expliquei antes ao leitor
benevolente, o Tio Alfredo foi o único agricultor da família; isso não fez dele
um homem mais pobre ou desconsiderado. Na altura, a cana de açúcar e o café
renderam-lhe o suficiente para montar, em Afife, uma espécie de “dependência do
sertão”, como pensaria a Tia Benedita, que morrera dois anos antes, em pleno
Verão, convencida de que o mundo estaria prestes a acabar, cercado de
imoralidade e de bolchevismo.
O
Tio Alfredo, pelo contrário, nunca acreditou no fim do mundo propriamente dito;
costumava dizer que já o tinha visto nos trópicos: era vasto, quente, pobre, e
não era o lugar ideal para envelhecer – razão por que regressou para junto do
mar do Minho, acreditando que o seu coração já não sofria das desventuras dos
vinte e seis anos, idade em que atravessou o Atlântico em busca de fortuna e de
linimento para um desgosto de amor.
O
velho Doutor Homem, meu pai, era céptico sobre essa matéria. Ele tinha a
certeza de que os desgostos de amor já não existiam naquela época, mas
conformou-se com a tradição oral da família, que emprestava ao Tio Alfredo uma
espécie de aura literária – e o ligava a um segredo, nunca desfeito, que
atravessou quatro décadas de discrição e mistério, coisa só possível nas
famílias de antigamente, que (pelo menos em voz alta) ligavam pouco à
metafísica e aos amores alheios.
De
tempos a tempos, chegavam-lhe pelo correio uns maços do ‘Diário de Pernambuco’;
lia-o na varanda, ou junto à lareira, como se acompanhasse os negócios locais
do Recife ou apreciasse, de longe, o curso das águas sujas do rio Capibaribe. O
seu irmão Alberto, bibliófilo e gastrónomo (a sua maior glória era ter servido
sardinhas fritas e ovos com chouriço a D. Ramón Otero Pedrayo, o magnífico
autor de ‘El mesón de los Ermos’) de São Pedro d’Arcos, dizia que ali estava um
português inteiro e conforme a regra: emigrante em toda a parte, saudoso de
tudo o que recordava.
in Domingo - Correio da Manhã - 26 Agosto 2012
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