domingo, março 27, 2011

Sobre Samuel Johnson

Existem na biblioteca de Moledo duas edições de ‘The Life of Samuel Johnson’, de James Boswell. Uma foi trazida de Londres, antes da I Guerra, pelo velho Dr. Homem, meu pai – são quatro volumes encadernados que ainda resistem ao tempo, à poeira e à humidade do Minho, que acompanham duas outras edições históricas, da autoria do próprio Johnson, ‘A Journey to the Western Islands of Scotland’ e ‘The Vanity of Human Wishes’. Guardo-os entre os mais nobres livros destas estantes desarrumadas como um testemunho sobre a passagem dos anos e do chamado “gosto literário” que evoluiu alguma coisa desde o século XVIII, mas não o suficiente para diminuir a importância da obra. A outra edição veio num só volume, “de bolso”, e não posso lê-la hoje em dia: as suas mil páginas de letra miúda não foram feitas para as dioptrias de um contemporâneo do óleo de fígado de bacalhau e das canetas de aparo amovível. Contento-me em folhear este e aquele capítulo da grande biografia, seguindo a minha memória, que ainda resiste aos labirintos da preguiça. O prazer que retiro da sua leitura está, hoje, moldado pela recordação de um outro mais antigo, que é o de descobrir o génio de Johnson e a capacidade de Boswell para admirá-lo. Tirando o ‘Tristram Shandy’, de Lawrence Sterne, e o conjunto da obra de Camilo, não encontro livro que mais me tenha acompanhado. A excepção são os grande romances ingleses, como ‘Orgulho e Preconceito’ e ‘O Monte dos Vendavais’, ou russos, como ‘Anna Karenina’.

A minha sobrinha Maria Luísa (a única esquerdista da família) não leu nem Boswell nem Johnson; a sua sensibilidade e o seu gosto nunca o exigiram, mas a curiosidade traiu-a algumas vezes. No sábado passado, na réstia do crepúsculo – um raio de luz que comove os velhos como se fosse o último filtro de calor do Inverno –, Maria Luísa sentou-se na varanda que dá para os pinhais que escondem, ao fundo, as dunas da praia. “Talvez devêssemos ser mais espirituais”, comentou ela, com um cigarro aceso. Ela queria dizer que, para as “classes médias”, a vida está difícil e que há coisas mais importantes que o dinheiro ou o poder, bálsamos fáceis e ainda acessíveis apesar dos tempos actuais.

Samuel Johnson escreveu largamente sobre “a consolação diante da morte”. Os livros seriam uma salvação, tal como a contemplação ou a amizade. “Talvez devêssemos ser mais espirituais.” Ninguém sabe ao certo quais são esses caminhos, mas decerto eles existem. Alguns vêm dar a Moledo.

in Domingo - Correio da Manhã - 27 Março 2011

domingo, março 20, 2011

Um promontório em Moledo

Recordo agora as minhas primeiras crónicas, escritas com a timidez de um aventureiro que não sabe que o é. Primeiro, a substituição do lápis pela caneta Parker que pertenceu ao velho Doutor Homem, meu pai; depois, a substituição do correio normal pelo fax; depois, a intromissão da minha sobrinha Maria Luísa que, uma vez por outra, tenta explicar-me como funciona o email. É um esforço inútil: escrevo devagar, com a compenetração de um contabilista do século passado que utiliza canetas de três cores diferentes para desenhar os seus balancetes.

Foi um longo processo, de qualquer modo, que levou ao abandono das vetustíssimas folhas de papel almaço pautadas a trinta linhas – justificação foi a de que o aparelho de fax não reproduzia convenientemente nem a caligrafia nem os espaços em branco. As folhas brancas seguiam, então, para o correio, transportadas por Dona Elaine. Mais tarde, quando ao fim de uns meses a família se interessou ou tomou conhecimento da existência, no seu seio, de um cronista vaidoso e mais do que encanecido: veio então um aparelho de fax para casa, instalado na biblioteca onde está armazenada parte das leituras dos Homem. É, suponho, o mais moderno artefacto da casa de Moledo, juntamente com uma torradeira recente que veio substituir a velhíssima máquina que testemunhava a dieta da casa ao pequeno-almoço.

A minha sobrinha Maria Luísa foi, de qualquer modo, a responsável por essa quota de vaidade. Foi ela que organizou as crónicas que compõem o primeiro dos meus livros; demorei três semanas a compor um prefácio inútil e quase absurdo para um livro em que o melhor (e o mais popular, no fim de contas) acabou por ser o retrato do senhor Dom Miguel. O segundo livro resultou de uma insistência de vários amigos. O terceiro chegou-me às mãos como se fosse uma novidade, com a bela capa desenhada pela D. Vera (D. Celina, da Biblioteca de Caminha, providenciou – dos seus excelentes arquivos – uma fotografia de Moledo nos anos de ouro da minha memória). Dona Elaine não apreciou o título: ‘Um Promontório em Moledo’ parecia-lhe uma coisa incompreensível. “Com tantas coisas bonitas na terra, o senhor doutor foi logo escolher um nome que ninguém entende.” Não valia a pena explicar à governanta deste eremitério as variações que podiam fazer-se sobre essa expressão (uma das minhas irmãs ainda murmurou um “não dá com nada”). Acabou por ser Maria Luísa a lutar pelo título; ela acha que não se ganha nada em ser-se democrático. Concordei, fingindo-me resignado.

in Domingo - Correio da Manhã - 20 Março 2011

domingo, março 13, 2011

Uma lembrança em tempo de aniversário

Nunca me preocupei com o envelhecimento. O meu médico, herdeiro e seguidor de uma categoria de benfeitores que viveu nas nossas províncias – e que tanto assistia a partos como cuidava de maleitas do fígado –, desenganou-me sobre o assunto quando me decretou uma série de doenças crónicas ou destinadas a afligir-me em permanência. Elas passariam a requerer atenções de um ser egoísta e que devia, daí em diante, consagrar parte do seu tempo à leitura das bulas dos medicamentos, a ministrar a dose correcta de comprimidos, a abster-se de uma boa parte da sua “alegria gastronómica” ou a olhar a passagem das estações como uma bênção do destino.

O destino tem abençoado este ser egoísta que aceitou, sem resistências de maior, a ideia de prolongar a vida através de abstinência, comprimidos, agasalhos e pequenos-almoços madrugadores. Não sigo uma dieta em particular; uma vida medíocre e sem demasiados altos e baixos foi avara em excessos comprometedores. Os meus irmãos dizem que nasci com a adolescência feita, e as minhas irmãs nunca cessaram as suas recriminações por uma vida de celibato. Os primeiros, criticam o meu modo de vida; as segundas, desprezam o meu modo de vida. Os primeiros, porque nunca fui o doidivanas que esperavam por companhia, nem o cônjuge cumpridor de deveres insuspeitos; as segundas, porque nunca tive a minha pacata existência assaltada ou por deveres conjugais, ou pela gritaria de crianças com sarampo, ou pela angústia de adolescentes problemáticos. Limitei-me a seguir a minha vida, o que não foi “aventuroso” – nem “fascinante”, como agora se diz.

Cheguei à última década. Conto os dias, como um milagre. Os meses, como uma desfaçatez. Os anos, como um acontecimento digno de registo. Às vezes olho a minha família, perfeita ou imperfeita, com a sensação de pertencer-lhes como um desvio permitido. As paixões de outrora têm apenas o perfume de outrora; as paixões da idade adulta relembram um olhar, uma conversa, um passeio pelos cafés, cartas trocadas sem dizer o que deviam dizer – sempre oportunidades perdidas que não mudariam o essencial da vida desta velharia minhota estacionada em Moledo. Os meus sobrinhos dão-me as notícias essenciais. Dona Elaine, a governanta deste eremitério, aconselha-me obediência ao médico e perseverança nos chás com ervas silvestres – e, já agora, que não canse tanto a vista com livros que já me não acrescentam sabedoria. Procuro neles algum conforto contra as ameaças da idade. O resto virá.

in Domingo - Correio da Manhã - 13 Março 2011

domingo, março 06, 2011

O fim do Inverno e a força dos elementos

A ‘Corografia Portugueza’ do Padre Carvalho da Costa ou o ‘Diccionario Chorographico’ de Américo Costa eram duas das presenças mais constantes das tardes de Verão em Ponte de Lima, onde a família se encontrava para fazer o que melhor apreciava: conversar e ver passar o tempo.

Tratava-se de uma academia de geógrafos a que se escapava com dificuldade; miudezas de paisagem, recordações de monumentos, aspectos de botânica geral, caminhos pelo meio da serra – de certa maneira era uma sabatina sobre coisas do Minho, um repositório de apontamentos retirados ao ‘Minho Pittoresco’, de José Augusto Vieira (de cujo primeiro tomo, de 1886, se conservavam duas cópias – uma em Ponte de Lima; outra, a que agora está em Moledo, nas estantes da velha casa portuense onde o velho Doutor Homem, meu pai, o mandara repousar convenientemente).

Agora, que o sol poisa como uma bênção sobre os pinhais de Caminha, Moledo e Vila Praia de Âncora, a recordação desses momentos é uma espécie de vida acrescentada. A Primavera espreita, como uma promessa de redenção. A crónica da província é feita de coisas insignificantes e de memórias das estações do ano, do ruído das motorizadas no final da tarde de domingo. Para entender esta desinteressante monotonia é preciso compreender como a província ficou abandonada. Reparo nisso quando regresso dos cumes de Santa Tecla, onde vamos uma vez por ano, depois de almoçar em Cerveira e de conferir que o rio segue o mesmo curso de sempre. Naquelas colinas que se afundam no mar do meu Minho vejo despontar a primeira luz verdadeira da temporada. Antigamente costumava vê-la nas mimosas que cresciam à beira da estrada de Viana ou nas ruínas de uma certa casa de Afife, onde se instalara um tio que emigrara e viera rico do Pernambuco.

Reparo, nestas recordações, que o Inverno se afasta lentamente. Para não contrariar os desígnios da natureza, contento-me em observar que o frio tem algumas vantagens para a saúde, para o restabelecimento das ervas do jardim e até para a vida familiar. O argumento convence-me, como é de esperar numa alma con­servadora, mas os domingos de Março continuam a não mos­trar nem uma parte da grandiosidade dos fins-de-semana esti­vais. Nas ruas de Moledo podaram e cortaram as ramagens das árvores. Uma poeira de frio ainda cobre os trilhos das dunas. Há uma nudez que comove os poetas e entristece os velhos, a quem o tempo não mostra piedade. Portanto, nada a fazer, por mais que me declare vencido pelos elementos, pelo clima e pela ordem das coisas.

in Domingo - Correio da Manhã - 6 Março 2011