domingo, agosto 26, 2012

Quadro décadas de discrição e mistério


O Tio Alfredo Augusto regressou a Portugal em Setembro de 1970 vindo do Rio de Janeiro. Tinha sessenta e cinco anos e era jovem o suficiente para acreditar que tinha ainda tempo para gozar alguns anos na quinta que comprara nos arredores de Afife, voltada para o mar, protegida por pinheiros e gigantescas sebes centenárias. Vivera a maior parte dos seus quarenta anos brasileiros no Pernambuco – mas, antes de regressar ao Minho, como o faziam os personagens de Camilo, quis passar uma temporada em Copacabana. Não para “gozar a vida” mas para pôr os papéis em ordem. Na verdade, como já expliquei antes ao leitor benevolente, o Tio Alfredo foi o único agricultor da família; isso não fez dele um homem mais pobre ou desconsiderado. Na altura, a cana de açúcar e o café renderam-lhe o suficiente para montar, em Afife, uma espécie de “dependência do sertão”, como pensaria a Tia Benedita, que morrera dois anos antes, em pleno Verão, convencida de que o mundo estaria prestes a acabar, cercado de imoralidade e de bolchevismo.

O Tio Alfredo, pelo contrário, nunca acreditou no fim do mundo propriamente dito; costumava dizer que já o tinha visto nos trópicos: era vasto, quente, pobre, e não era o lugar ideal para envelhecer – razão por que regressou para junto do mar do Minho, acreditando que o seu coração já não sofria das desventuras dos vinte e seis anos, idade em que atravessou o Atlântico em busca de fortuna e de linimento para um desgosto de amor.

O velho Doutor Homem, meu pai, era céptico sobre essa matéria. Ele tinha a certeza de que os desgostos de amor já não existiam naquela época, mas conformou-se com a tradição oral da família, que emprestava ao Tio Alfredo uma espécie de aura literária – e o ligava a um segredo, nunca desfeito, que atravessou quatro décadas de discrição e mistério, coisa só possível nas famílias de antigamente, que (pelo menos em voz alta) ligavam pouco à metafísica e aos amores alheios.

De tempos a tempos, chegavam-lhe pelo correio uns maços do ‘Diário de Pernambuco’; lia-o na varanda, ou junto à lareira, como se acompanhasse os negócios locais do Recife ou apreciasse, de longe, o curso das águas sujas do rio Capibaribe. O seu irmão Alberto, bibliófilo e gastrónomo (a sua maior glória era ter servido sardinhas fritas e ovos com chouriço a D. Ramón Otero Pedrayo, o magnífico autor de ‘El mesón de los Ermos’) de São Pedro d’Arcos, dizia que ali estava um português inteiro e conforme a regra: emigrante em toda a parte, saudoso de tudo o que recordava.

in Domingo - Correio da Manhã - 26 Agosto 2012

domingo, agosto 19, 2012

Lições de Economia Política no Minho


A minha sobrinha Maria Luísa desistiu de ir ao Brasil e passou as manhãs das duas primeiras semanas de Agosto (vigiando os filhos e folheando uma pilha de romances) sentada no areal de Moledo. Conseguiu apenas ler alguns dos livros; quanto aos filhos, deixou que eles experimentassem a noção de “livre arbítrio”, tão cara a teólogos e desprezada pela puericultura: sabendo nadar, temendo o perigo como qualquer ser humano, nenhum mal maior podia acontecer-lhes – é a lição de Dona Ester, minha mãe, que passa de geração para geração. A minha presença na praia já não tem o horário de antigamente, quando às dez e meia da manhã o mar do Minho se iluminava o suficiente para podermos falar de “época balnear”. Com o toldo alugado à época, apareço ligeiramente depois dessa hora, para conferir que há coisas que, felizmente, não mudaram ainda. É a felicidade de um conservador.

As férias, este ano, decorrem com tranquilidade. As minhas irmãs anunciaram que não vão ao estrangeiro (elas tinham descoberto a existência de ‘spas’ pelo mundo fora), a maior parte dos meus sobrinhos regressou a Moledo “com a crise”, e Maria Luísa não compra todos os jornais que cabem na sacola de praia.

Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, tem desenvolvido bastante os seus estudos de ciência política – e decretou que, com a crise, regressou algum bom-senso à vida portuguesa. Tento alertá-la para o drama da economia, mas a sua sabedoria minhota não se compadece e acha que “temos de aprender a lição”. Ela tinha visto, na televisão, umas pessoas que se queixavam de que este ano tinham cancelado as suas férias no estrangeiro, e que estavam obrigadas a dividi-las entre um tempo em casa e outro “por aí”, na praia, no campo, nas cidades ou nas províncias.

Dona Elaine é católica; acredita no juízo final e, desconfiando dos economistas, numa espécie de justiça que mais tarde ou mais cedo chega para colocar as coisas no seu devido lugar. De certo modo, fica satisfeita com as coisas da maneira que estão. Ela recorda-se dos tempos de penúria e a mãe testemunhou o racionamento dos tempos da guerra, nos anos quarenta, quando não havia férias pagas.

“O senhor doutor há quanto tempo não vai ao estrangeiro?”, perguntou ela. Tentei explicar-lhe que sou um caso à parte, que a idade só me permite atravessar a fronteira de Valença, que estou de férias há alguns anos, e que Moledo é uma espécie de centro geodésico (com perdão de Vila de Rei) do meu mundo.
“Pois sim”, voltou ela. “Hoje temos bifes de cebolada.”

in Domingo - Correio da Manhã - 19 Agosto 2012

domingo, agosto 12, 2012

A doutora Teresa veio do Algarve

No domingo da semana passada tivemos de cumprir a sereníssima obrigação mensal de almoçar no restaurante Ancoradouro. A operação exige alguns cuidados durante o Verão porque, se os princípios se fizeram para serem cumpridos, também é verdade que não se podem desperdiçar "manhãs gloriosas" de praia como as dos últimos dias; é necessário, portanto, conciliar o dever de parte da família se apresentar junto do toldo alugado à época desde há cerca de cinquenta anos sem interrupção, com o compromisso de nos apresentarmos à mesa a horas consideradas regulamentares. Os Homem são gente exímia na arte do compromisso; às duas horas lá estávamos, em número de oito, pedindo ou o gin inicial (a minha sobrinha Maria Luísa, por exemplo) ou a Água de Melgaço com rodela de limão, deixando para trás uma manhã gloriosa de praia.

A expressão "manhãs gloriosas de praia" não me pertence; foi a dra. Teresa, acabada de regressar das suas férias no Algarve, que a usou para as descrever, e certamente para as distinguir das manhãs de Moledo. "Claro que não se compara", como a dra. Teresa acrescentou, antes de regressar às colinas de Venade, mesmo acima de Caminha, onde as agruras do clima não se pressentem como aqui, diante da Ínsua e do vulto de Santa Tecla.

A verdade é que, quer durante a minha juventude e quer durante a minha idade adulta, a praia não tinha existência social propriamente dita. Estava a meio caminho entre o sanatório e o ginásio, como nos "romances termais" de final de século, e envolvia-a uma aura de romantismo fora de época, pouco português e certamente nada burguês. Dona Ester, minha mãe, achava que frequentar a praia servia de terapêutica do corpo e da alma, em simultâneo. Enquanto o meu pai ficava por algumas horas entregue à sua biblioteca, "para aproveitar parte das férias", ela lançava-nos às ondas frias e coroadas de sargaço, na crença de que corpos bronzeados resistiam melhor às gripes, e de que o iodo era a essência requerida para alimento das almas.

Não, Moledo não tem a doçura das águas algarvias. O mar de Moledo desafia a consolação requerida por corpos fatigados por um ano de trabalho. Se há época balnear, como se dizia no linguajar de antanho, é aqui que ela nasceu, entre o perfume dos pinhais e a ventania que varre as ondas. De vez em quando há uma manhã gloriosa de praia rasgando a neblina que cobre as ondas.

Tudo são mitos, explicava o velho Doutor Homem, meu pai, sorrindo à ideia de explicar o apelo de Moledo. No fundo, foi em Biarritz, e não nos trópicos, que ele pediu Dona Ester em casamento.

in Domingo - Correio da Manhã - 12 Agosto 2012

domingo, agosto 05, 2012

O retrato de um cavalheiro discreto


O velho Doutor Homem, meu pai, era advogado e creio que não leu Montaigne. As suas leituras, a partir de certa altura, confinavam-se ao essencial de um espírito que tinha feito as suas escolhas e que raramente precisava de sair delas. Ele morreu, serenamente, em Novembro de 1974, lamentando que o dr. Palma Carlos não tivesse continuado primeiro-ministro e, ao mesmo tempo, confirmando que “o coronel do monóculo” era vaidoso demais para um país tão pequeno. Por várias vezes tivemos de lembrar-lhe que “o coronel do monóculo” era um general, mas a informação não surtiu efeito, despromovendo-o . Este género de teimosia era comum na família – a Tia Benedita acreditou até ao fim da vida (deixou-nos no interessante Verão de 1968) que o dr. Afonso Costa regressaria para perseguir os padres e roubar os tesouros das igrejas do Minho. Depois de 1937 também por várias vezes a informámos do falecimento, em França, do ditador da República. Em vão. Com ela, todo o cabido da Sé de Braga esteve sempre em perigo, correndo o risco de ser passado à baioneta às mãos do demagogo.

Refiro Montaigne porque o conjunto de interesses do velho Doutor Homem, meu pai, era tão variado como o foi a leveza da sua vida. “As almas mais belas”, dizia o mestre francês, “são as que têm mais variedade e flexibilidade”. Ao passar os olhos pela sua biblioteca (que herdei aos poucos e desorganizei com aplicação), revejo um homem que alimentou uma grande curiosidade pelo mundo – e cuja grande ambição era ler os editoriais do ‘The Daily Telegraph’ nunca com menos de dois dias de atraso para não ficar desactualizado em matéria de doutrina. Essa curiosidade fez dele uma espécie de “homem do Renascimento”. Isso fez dele um ser acessível e bem-humorado, tanto quanto disponível para as descobertas e desvarios da humanidade. A sua capacidade de escandalizar-se era mínima; aceitava com tranquilidade os divórcios da família (que se repetiam com regularidade) e tinha uma fé ilimitada na nossa competência para cometer erros amáveis que depois seriam corrigidos a expensas próprias. A esta distância recordo-o como um cavalheiro cordato que não gostava de fatos assertoados nem de trinados do fado português; sobrevivendo a Dona Ester, minha mãe, tentou ser um solitário, sem o conseguir. Perseguiam-no a música, a leitura, a paixão por Inglaterra e o riso que o fazia desconfiar do país, que ele achava inteiramente ingovernável enquanto não existissem uma câmara dos Lordes – e um Speaker’s Corner na esquina da Avenida dos Aliados.

in Domingo - Correio da Manhã - 5 Agosto 2012