domingo, setembro 28, 2008

As coisas de Outono

O meu médico de Viana do Castelo acha que o meu corpo sobrevive mais uns tempos – depreendi isso quando percebi que manteve a minha dose habitual de comprimidos para os males gerais e apenas confirmou a existência dos males particulares. A minha visita semestral já não é como a de outros tempos, quando ia carregado de amostras e relatórios de "outros especialistas". Com esta idade sou apenas uma "amostra geral" – nada de especial. Digamos que a idade desvaloriza as doenças ou a necessidade de sobreviver. A certa altura, ninguém fica admirado com alterações de humor, defeitos de funcionamento e deficiências motoras, que ficam a ser o retrato de conjunto deste vosso cronista.

O velho Doutor Homem, meu pai, habituado – pela sua profissão de advogado – a escutar queixas e a ouvi-las com respeito (ou perderia a clientela), desvalorizava as suas próprias queixas, menosprezando achaques e avarias no seu sistema hepático. Ele dizia que, ao contrário do que se pensava, se envelhecia com mais dignidade se poupássemos nas queixas porque o rio do mundo corre quase na mesma direcção. A lição do estóico – ou do epicurista – tem a ver com a contemplação desse rio, enumerando as etapas até ao encontro final com a morte. Dona Ester, minha mãe, não gostava dessa conversa – que era rara paredes dentro. Ela acreditava que bastava nascer e envelhecer no Minho para que a vida tivesse sentido. De alguma maneira tinha razão; o Minho tem prolongado a minha vida, que seria desperdiçada no meio do ruído da cidade. Fala-se demais, lá. Eu, que leio os jornais antes das dez da manhã, que oiço as notícias da rádio às sete (juntamente com as informações sobre o trânsito em Lisboa ou no Porto), e que assisto com um desinteresse solene e discreto aos telejornais, acabo o dia a pedir um pouco de silêncio, um pouco de recato e de afastamento.

A minha sobrinha Maria Luísa acha que isto é melancolia do Outono. Ela acha que mesmo as grandes meditações sobre a vida em geral dependem de coisas tão vulgares como a queda das folhas dos plátanos ou o desarmar das barracas de praia no areal de Moledo. Explico pacientemente que o grande Outono sou eu mesmo, mas o argumento não convence. E então penso que as coisas estão certas – e que esse traço de juventude a mantém perfeita na sua ingenuidade.

in Domingo - Correio da Manha - 28 Setembro 2008

domingo, setembro 21, 2008

Economia política

O velho Doutor Homem, meu pai, desconfiava do capitalismo – mas menos do que o dr. Salazar, que atribuía ao mundo moderno todos os defeitos que conhecia (o seu conhecimento do mundo, aliás, era estreito, conquanto fosse literariamente sóbrio). Educado no catolicismo piedoso de antanho, habituei-me a ser sensível à legião de pobres que vivia no meu país nesses anos – e que hoje se chamam "desfavorecidos" –, atribuindo uma responsabilidade repartida aos ricos, às condições gerais da existência e à falta de educação.

É preciso dizer-se (caso o leitor tenha andado distraído) que na família nunca fomos propriamente liberais nessa matéria. Alguma coisa devia sobrar para os governos providenciarem, depois de se retirarem de onde não deviam estar. A Tia Benedita achava que os constitucionalistas (ela imaginava-os sempre à luz mortiça do São Carlos, vestidos de casaca e com a testa perlada de gotas de suor, negociando lugares e prebendas), primeiro, a República, depois, e a Carbonária e o bolchevismo finalmente, se tinham esforçado por criar pobres em abundância. A pobre senhora imaginava um mundo libertado pela Vilafrancada, coroado pelas cores da bandeira do senhor Dom Miguel, que tinha sido varado pelas esquerdas do mundo todo. Deus a conserve na sua companhia.

Esse mundo de especulação, gritaria nas bolsas, riscos financeiros e investimentos incertos, teve no meu avô – administrador de quintas no Douro – um adversário à altura. Não que ele desconfiasse "da economia"; não podia. Nem da moderna ciência da contabilidade. Nos seus livros, as pautas do "deve" e do "haver" deviam equilibrar-se com moderação, mas sem vergonha do lucro. Investimentos só deviam fazer-se quando as colheitas (e as vindimas, claro está) estivesse asseguradas, com o argumento de que não se deviam empenhar aos bancos os bagos futuros. Esta visão dos socalcos do Douro como garantias bancárias sempre o poupou a dissabores.

Mas o mal do capitalismo, dizia o velho Doutor Homem, era a ideia de que haveria dinheiro a rodos – e para todos. Não há. Não houve. Tendo sido um dos primeiros mestres de direito bancário em Portugal, ele sabia que o dinheiro era um bem caro e perverso, porque alimentava a cobiça que não podia realizar-se por si mesma, com trabalho, morigeração, poupança e honra. Os tempos são outros, agora – mas os resultados são os previstos, dando razão ao meu pai, esse mestre de economia política da velha Foz.

in Domingo - Correio da Manhã - 21 Setembro 2008

domingo, setembro 14, 2008

Meditações escusadas

Com esta idade, o que sobrará da minha vida? Dizem-me que esta pergunta é inútil, o que se compreende neste mundo em que tudo tem um fim e uma finalidade. Tentei, com vagar (mas sem paciência), explicar a um dos meus sobrinhos que há uma distinção entre "fim" e "finalidade" e que não se trata apenas de uma questão de dicionário – trata-se de um sopro e, ao mesmo tempo, de uma questão com a eternidade. Por isso se faz essa pergunta: "Com esta idade, o que sobrará da minha vida?"

Os Homem, por preguiça mais do que por humildade (virtude que não se encontra com frequência no seu idioma), "deixaram-se estar". A expressão é, como o leitor já percebeu, da Tia Benedita – a única que compreendia as indecências da família antes de elas ocorrerem –, e resume a História de Portugal desde que o senhor Dom Miguel embarcou na derradeira viagem de Sines para Génova. "Deixar-se estar" significava pertencer a um mundo mas perceber que ele não tinha sentido. Esse mundo, ao qual os Homem pertenciam, ruíra de velhice, desmoronara-se como as magníficas construções dos velhos impérios. Simplesmente, em vez de deixarem uma amostra da glória de outrora, limitaram-se a ser vistos apenas como uma ruína. Nós temos vivido entre essas ruínas, acompanhando o mundo pela imprensa, cultivando as rosas – como o poeta – e observando como as novas gerações regressam aos velhos padrões, desiludidas por anos de rebeldia que provocam o cansaço habitual (além de serem nefastos para a saúde). O meu avô foi o mais sério intérprete desse sentimento. Ignoro como era a sua, digamos, "vida interior" – e decerto a tinha, porque era muito calado –, mas reconheço o esforço que colocava em defender a pequena felicidade da sua tribo.

O velho Doutor Homem, meu pai, embora recusando-se a admitir que "sabia o que era melhor para a sua descendência" (porque, para os seus padrões de tolerância, aprendidos em bravos anos de anglofilia, isso representava uma perniciosa intromissão na vida dos outros), mostrou melhor do que ninguém em que consistia a felicidade de ser ignorado. Dona Ester, minha mãe, apreciava-lhe esse heroísmo, raríssimo entre as pessoas do século passado, que buscavam a glória e o reconhecimento dos outros; ele limitava-se a levar-nos em viagem e a abrir as portas da paisagem. Passados estes anos, quando faço perguntas absurdas ("Com esta idade, o que sobrará da minha vida?"), lembro-me disso. Não me sobra nada. Vivi tudo.

in Domingo - Correio da Manhã - 14 Setembro 2008

domingo, setembro 07, 2008

O direito a não casar (2)

Os grandes casamentos comportam uma dose substancial de hábito e de medo da tragédia. O hábito (e a rotina, inimiga fatal dos "modernos") associa-se ao medo da tragédia e acomodam-se ambos para prolongar a existência e para se protegerem das incongruências do destino. Eu, se tivesse uma leve ideia do que fosse a humildade, esse bem inestimável e cada vez mais raro na pátria, nem falaria do casamento – uma vez que nunca lhe experimentei as virtudes nem os horrores – nem utilizaria esta linguagem que chocaria o velho Doutor Homem, meu pai, habituado à grandeza dos clássicos e ao rigor do romance inglês. Mas, ao fim de tantos anos da vida tranquila na província, acabo por ser tocado pelo mal do génio português que tanto fala do que não entende como mascara a ignorância com ditirambos de estilo. Camilo Castelo Branco, que me vigia das estantes como uma consciência maltratada, mencionou uma e outra vez os seus bigodes tingidos por atentados do estilo – eu limito-me a pedir perdão ao leitor, que é benevolente e conhece os efeitos provocados pela idade.

Foi Dona Ester, minha mãe, que me lembrou de que não era necessário eu casar. "Para infelicidade, já basta a que sabemos", rematou ela antes de me recambiar para o Tamariz, onde – durante um Verão suave e melancólico – me curei de um desgosto de amor. Nesse tempo havia desgostos, alguns profundos, abissais, catastróficos, mas ainda não se tinha descoberto a existência da "depressão". O que tinha um efeito, teria uma causa; e esta era sempre visível ou arquivada na categoria dos devaneios místicos, a que éramos pouco dados paredes dentro.

O Tamariz dessa época (o de hoje não conheço) pareceu-me um sanatório adequado para o mal que me fora diagnosticado e, como Hans Castorp em 'A Montanha Mágica', o infindável e aborrecido romance de Thomas Mann, limitei-me a seguir as prescrições médicas: sol e banhos de mar durante a manhã, esplanadas durante a tarde e roupas elegantes ao jantar – o egoísmo natural triunfou sobre o sentimento. Indiferente ao meu sotaque do Norte, o Estoril dos anos cinquenta era o nosso paraíso cosmopolita. Esse cenário despertou-me do meu estádio macambúzio e aproximou-me da glória mundana. Quando regressei à pátria dos meus avós, tinha atingido o propósito de D. Ester: apresentei-me bronzeado e disponível para discutir com a eternidade.

in Domingo - Correio da Manhã - 7 Setembro 2008