domingo, janeiro 27, 2008

Educação sentimental

O velho Doutor Homem, meu pai, sobreviveu à revolução de 1974 e continuou, como portuense antigo, a ler ‘O Primeiro de Janeiro’ e o ‘Telegraph’, que já não vinha do clube inglês da Rua das Virtudes – mas pelo correio, com quatro dias de atraso. Esta indiferença pelas agonias da Pátria e pelas paixões da democracia intrigava as visitas de casa, que se lamentavam bastante e recorriam à medicina da indignação para esconder o despeito. Mas a família, que era conservadora antes do Constitucionalismo e do ódio a Fontes Pereira de Melo, não se comovia com o anúncio do fim do mundo, que viria com o socialismo.

Nisso, o papel de D. Ester, minha mãe, foi decisivo. Ela não via virtudes no sentimentalismo nem nos poetas românticos, preferindo o bronzeado das praias do Minho e uma educação ligeiramente frívola em matéria literária mas boa em tabuada. Isso conservou-nos (somos três irmãos e duas irmãs, eu o mais velho com larga distância) com saúde, guarda-roupa razoável e uma levíssima misantropia, condições mínimas para sobreviver nos novos tempos democráticos. As minhas irmãs lamentam bastante, porque acham que foi graças a isso que cheguei solteiro à velhice, indiferente aos benefícios do matrimónio e à história de Romeu e Julieta.

A minha sobrinha Maria Luísa, educada com muita literatura (boa parte, da minha biblioteca), vai no segundo divórcio mas, felizmente, não chegou ao terceiro casamento. Tenho uma secreta admiração pela sua biografia amorosa. Os Homem, apesar de tudo, deixaram um rasto de amoralidade nos arquivos: um tio dos Arcos raptou uma noiva à porta da igreja para casar com ela em Espanha; o Tio Alberto, que foi o maior bibliófilo do Minho e que cozinhou para Camilo José Cela, enamorou-se por uma princesa do Cáspio; o velho Doutor Homem, meu pai, com o pretexto de visitar o dr. Cunha Leal, exilado na Corunha no tempo de Salazar, ia comer ostras a Ribadeo e visitar os botequins de Vigo; e o Tio Alfredo Augusto, que regressou do Pernambuco no final dos anos sessenta, suspirava com saudades das plantações de açúcar.

Ao ler estas crónicas, a família suspeita de que alberga um sátiro sem vergonha. Só a minha sobrinha Maria Luísa, que vota à esquerda, acha graça às aventuras de um bando de desmiolados que venerou o senhor Dom Miguel.

in Domingo – Revista Correio da Manhã – 27 Janeiro 2008

domingo, janeiro 20, 2008

O segredo da longevidade

Antes de começar a escrever neste jornal, o dr. Octávio Ribeiro quis levar-me a um restaurante onde já não entrava desde os meus tempos de juventude – há muito tempo, depois da Guerra; estávamos em 1948. Eu envelheci; o restaurante renovou-se. Mas em ambos permanece aquela espécie de melancolia que prescreve como as velharias. Ele conserva a sua dignidade e a indiferença diante das grandes mudanças do mundo; eu sobrevivo com dieta. Ambos continuamos conservadores, como seria de esperar.

Aos oitenta e tantos anos não é de esperar que diga outra coisa. Vivo no Minho, e a única coisa que não tem segredos para mim é o mar de Moledo, onde me instalei há mais de vinte anos para usufruir de uma reforma que agravaria a minha preguiça e me obrigaria a ordenar a biblioteca.

Os Homem são uma família peculiar: mantêm – no casarão de Ponte de Lima, velha glória dos antigos granitos – restaurado e limpo, o retrato do senhor Dom Miguel; continuam a almoçar aos domingos para conservar uma das grandes tradições de família, a má-língua; em tudo o resto, tornaram-se “filósofos”, designação que Eusébio Macário, o personagem de Camilo, adoptou para aderir aos novos tempos que lhe concederam o título de barão. Essa é a diferença. Educados pelas derrotas na política, primeiro com a derrota de Évora Monte, depois com o advento da República, finalmente pela desilusão democrática do velho Doutor Homem, meu pai, na família não houve barões nem se aceitaram títulos públicos. Os Homem vivem em retiro, se assim se pode dizer, e não aceitam – dentro de portas – que a história se reescreva com a paixão dos vencedores, que são sempre vaidosos.

O meu médico de Viana (a quem recorro nas aflições, e que vigia o temperamento das coronárias e do fluxo renal) não o diz, mas sei que a longevidade dos Homem o aflige como um milagre da província. O segredo é só este: espremer a pasta de dentes pelo fundo, não ler demasiados romances, manter os retratos dos antepassados, levantar cedo e evitar ceder à indignação. Depois de fazer oitenta e cinco anos, a família trata-me como uma página do álbum de glórias, anterior ao Titanic, mas destinado ao naufrágio ou ao museu. Faço o que posso, só para não os desiludir.

in Domingo - Revista Correio da Manhã – 20 Janeiro 2008

sábado, janeiro 05, 2008

A vida dá voltas

Despeço-me com o ano; Janeiro é um mês tão cruel como qualquer outro para que as coisas se encerrem ou se renovem. A esta distância, em pleno Inverno, imagino o velho Doutor Homem, meu pai, sentado a esta mesma janela. É um sentimento vago e estranho. As coisas vão e vêm. Perdemos amigos e perdemos oportunidades, perdemos uma parte da família e perdemos um ano a seguir ao outro. Dona Ester, minha mãe, era contra o sentimentalismo e só por uma curiosa coincidência pôde encontrar a alma que lhe seria mais próxima durante toda a sua vida; teria sido num Verão de há muitos anos, quando o meu pai era ainda um “dandy” recém-chegado de Inglaterra, para onde o enviara a generosidade do meu avô – que achava, como Kingsley Amis, que havia de tudo em Londres. Celibatário, compreendo estes mistérios, que me comovem uma vez ou outra. Passei quase um século coleccionando histórias e coincidências, memórias que apenas voam como a poeira.

Janeiro é um mês tão bom como qualquer outro para despedidas e um cronista de província está sempre de férias, num lugar que parece fora do mundo, enevoado, onde as coisas têm uma importância relativa. Depois de dobrados os oitenta e cinco, não guardamos ressentimentos nem rejubilamos por qualquer motivo. Sabemos que a vida dá voltas e que no próximo ano haverá Janeiro, haverá frio, e que os Homem – um clã como qualquer outro – continuarão os seus almoços de domingo para se assegurarem de que eles próprios continuam.

Depois das férias de Inverno, a minha sobrinha Maria Luísa partiu com os filhos. Levou livros na bagagem; leva sempre. Na véspera de Ano Novo insistiu, diante de toda a família, em que eu devia escrever um romance – ela acredita que tenho coisas para dizer, o que é falso. Tenho apenas memória, tanto para as boas horas como para as coisas funestas. Um romance é sempre uma vingança, como explicou o autor do “Tristram Shandy”, e pouco mais. Nem assim desistiu e prometeu regressar ao tema.

As minhas irmãs consideraram que era necessário pensar numa viagem que as transporte para outro hemisfério, insistindo em que devo regressar a qualquer lado onde estive antes, talvez o Brasil, onde fui feliz há muitos anos, quando Copacabana ainda não era conhecida pela Tia Benedita. Ela não conheceu o samba, não ouviu as canções de Dick Farney, não viu o homem chegar à Lua – mas, na sua imaginação piedosa, protegeu a família da dissolução e dos tempos modernos.

É um mês de recordações, Janeiro. Ali está um retrato do Tio Alberto, o bibliógrafo de São Pedro de Arcos, o enamorado eterno, o venturoso botânico que morreu de amor. No extremo da sala, a fotografia da jovem Isabelle, “a pequena holandesa” que veio da Frísia para passar o Verão e o Outono com o meu sobrinho Pedro. A vida dá voltas.

Dona Elaine, a esta hora madrugadora, readquiriu a posse sobre o seu território – todo o eremitério de Moledo lhe pertence agora, sem visitas nem família ou adolescentes ruidosos. Sou um inquilino da minha casa, e um inquilino das minhas memórias, que me não pertencem nem me valem. “Um ano sobre o outro”, como repetia o velho Doutor Homem, meu pai, dobrando o “Telegraph” ou “O Primeiro de Janeiro” no primeiro dia do ano, considerando que não havia nada de novo sob os céus do Minho ou da sua cidade eterna, o Porto das neblinas, silencioso, literário, cheio de coisas antigas. Com este cenário, Moledo volta a ser o centro do mundo. Perto, em Ponte de Lima, o casarão onde os meus antepassados viveram, recebe a humidade das geadas e o seu longo corredor frio deixa vislumbrar o retrato do senhor Dom Miguel, uma dessas recordações de família que daqui a vinte anos ninguém saberá explicar.

A vaidade das pequenas coisas. A memória dos gestos que perduraram. Numa praia do Minho, minha mãe estende a mão para um grupo de adolescentes bronzeados e sorridentes – arrastados pelo areal como a derradeira brisa do mundo. Num passeio da Foz, pedalo numa bicicleta azul e páro diante do mar. Há muitos anos, o velho doutor Homem, meu pai, veste o sobretudo e inicia o seu caminho discreto e solitário para o escritório onde se dedicou a sustentar a família. É Janeiro. São retratos que passaram de repente sobre anos e anos de uma vida com sujeito, predicado e complemento directo. Não guardo lágrimas para este momento.

in Revista Notícias Sábado – 5 Janeiro 2008