domingo, outubro 30, 2011

Da memória de uma biblioteca antiga

O meu contacto com a filosofia foi breve. Dos mestres do Direito passei rapidamente para a banca do praticante, seguindo o trilho do velho Doutor Homem, meu pai, em cujo escritório gastei a minha idade adulta e onde aprendi quase tudo o que pareceu útil para a profissão e para liquidar as minhas contas pessoais. O escritório era austero e simples, silencioso, repleto de livros – na maior parte inúteis para a advocacia e bons para as minhas memórias pessoais. Não havia poesia (o velho Doutor Homem, meu pai, reservava o género para a sua estante predilecta, onde acumulava clássicos ingleses, ou para o limbo de Ponte de Lima, onde reuniu boa parte dos seus autores preferidos para todas as estações, mas sobretudo para o Verão). Mas havia História e ensaio em lombadas discretas, usadas, manuseadas.

Os meus gostos de juventude foram os meus gostos de toda a vida – história, curiosidades regionais (julguei-me, em tempos, um geógrafo amador sem saber que não passava de um coleccionador arrogante), botânica, romances que perpetuavam a minha incapacidade de lidar com os sentimentos mais profundos. A filosofia limitou-se a uma passagem breve por autores morais e desinteressantes; havia pouca relação entre a sua complexidade e o gosto pelas coisas imediatas, como a contemplação da praia de Moledo, o trato dos hibiscos e das camélias (que tanto agradavam a Dona Ester, minha mãe), a conservação da memória da família, uma velharia do Antigo Regime que sobreviveu com saúde graças ao clima do Minho e à sua capacidade de manter um certo egoísmo sem arrependimento.

Descubro hoje essa parte da biblioteca dos anos dourados da juventude. A minha sobrinha supõe – e com razão – que não existe, propriamente, biblioteca de juventude, mas apenas recordações discretas de livros que, com o tempo, julgamos ter lido. Com os anos, julgamos que esses livros contribuíram para aquilo que chamamos “a nossa formação”. Mas não é verdade; o espírito da “formação” só aparece mais tarde, discreto como uma neblina que paira sobre os cumes da idade – na juventude, as leituras têm finalidades diversas, e a menor delas é contribuir seja para o que for. Os livros substituíram aventuras espantosas da minha adolescência (uma coisa que a família garante, ainda hoje, que eu não tive, o que agradeço), mas não lhe acrescentaram senão a predisposição para uma idade adulta e sóbria. Enfim, cumpriram a sua função: ajudaram a envelhecer com discrição e tranquilidade. Não há bem maior, acho eu.

in Domingo - Correio da Manhã - 30 Outubro 2011

domingo, outubro 23, 2011

As doenças, um luxo da meia idade

A vida tem coisas simpáticas e uma delas não foi a descoberta de que, aos quarenta anos, eu era diabético. Nessa altura, os motoristas de táxi usavam farda com boné e, a maioria deles, gravata – foi um deles que me trouxe do consultório médico onde a família, periodicamente, se queixava amargamente dos males do corpo. O consultório era na Baixa do Porto e o táxi era igualmente familiar; o sr. Gomes passava por ser uma instituição que prestava o serviço de táxi para toda a casa, e por marcação inapelável em qualquer estação do ano. No Natal, o velho Doutor Homem, meu pai, gratificava simbolicamente essa dedicação que valia a qualquer membro da família ou funcionário do escritório ser transportado no velho Plymouth (geralmente até S. Bento para tomar o comboio, ou para o serviço regular entre casa e o escritório, que o velho causídico apreciava como um luxo de lorde, enquanto lia o jornal): o sr. Gomes fazia parte da história desta família portuense e não lhe faltava o Vinho do Porto no fim de ano.

A partir dos quarenta anos, o desfile de doenças e restantes males da idade era uma coisa vulgar e a que se não dava grande importância. A eternidade nunca preocupou os Homem, que encontraram o mundo já organizado e com um lugar reservado entre a velha burguesia da cidade. Esse privilégio teve o seu preço: uma vida moderadamente anónima, a indiferença diante dos atropelos da política (parte da família continuava a chamar Rua do Repouso à vintista Rua do Heroísmo, por muito respeito que lhes merecesse o senhor Conde de Campo Bello), leituras amenas e pouco populares, o gosto pela província mais do que pelo pobre cosmopolitismo da época e um certo desmazelo na forma como aceitava o destino, permitindo-se, aqui e ali, viver em grande. Crê-se que esse “estilo” (era também assim que a Tia Benedita, protegida pelos granitos e arvoredos de Ponte de Lima, designava os escândalos da família) nos permitiu sobreviver em paz, venerando os retratos dos antepassados e sendo ignorados pelos contemporâneos.

De entre as manias dos Homem nunca constou a hipocondria. As doenças faziam parte desse “estilo”. À excepção da Tia Benedita e de Dona Ester, minha mãe (para quem a farmácia mais adequada se compunha de iodo, areia das praias do Minho, água fria e bronzeado pelo Verão fora), tínhamos um certo afecto pelas doenças triviais: problemas nos rins, um pouco de hipertensão, gota ou fígado. Era o luxo da meia idade. Mas não atrapalhavam – longe disso – o destino a cumprir nem a finalidade de uma vida inteira. Até hoje.

in Domingo - Correio da Manhã - 23 Outubro 2011

domingo, outubro 16, 2011

Acerca da música e da verdadeira melodia

Havia, na família, uma aversão mitigada por Chopin. Tirando o Tio Henrique, melómano de Arcos de Valdevez (passou parte da sua vida a congeminar uma obra sinfónica sobre os sertões africanos com um exagero de acordes melódicos de oboé), o velho Doutor Homem, meu pai – que a tudo sacrificava os seus discos de Anna Moffo (que ele jurou ter visto em França na pele da Zerlina de ‘Don Giovanni’) com a sua melancolia outonal de ‘Lucia di Lammermoor’ ou de ‘O Elixir do Amor’ – e o Tio Alberto que disfarçava o seu desinteresse por ópera com duas ou três descrições dos grandes teatros da Europa, a família achava a música, em geral, um passatempo interessante ou, pelo menos, um ruído de fundo agradável e mais aprazível do que um vago chilreio nas hortas.

Chopin passava por ser, em geral, um tanto romântico demais, um nome que se poderia citar sempre que havia necessidade de dizer qualquer coisa sobre música, mesmo que não viesse a propósito. Era uma grande injustiça. Chopin já sofrera o bastante pela sua ligação com George Sand, e não precisava desta desfeita familiar. As suas polcas e mazurcas eram abafadas pela veia melodiosa dos nocturnos e dos prelúdios, coisa que não cabia no feitio de uma família impaciente e dada a ironias. Fui criado nesse ambiente de desprezo pela música que ambientava grandes paisagens melancólicas, soturnas, crepusculares, tristes ou apenas ‘melosas’, uma palavra que Dona Ester, minha mãe, usava para comentar certas companhias femininas dos meus irmãos. Por oposição, prendi-me a Liszt, que não era romântico nem soturno – apenas profundo, grave e metafísico – e ao barroco. A ligação ao barroco só pôde completar-se depois de o Dr. Barreto Nunes, o meu bibliotecário de Braga, ter reconstruído parte do que seria o gosto pelo contraponto em poesia e na vida real. Na verdade, a geometria do barroco, instável e falsa como o ouro de Minas Gerais, interessava-me como uma espécie de contradança, com as suas evoluções redondas, o seu ondear, e os seus mitos fundadores: a fragilidade das coisas, a necessidade de mascarar a tristeza, a exigência de uma alegria cheia de contenções. Liszt era o contraponto possível.

Os meus sobrinhos, que desconhecem esta discussão, também não andam longe disto. Pedro, o arquitecto, ouve no carro uma coisa vaga e barulhenta a que dá o nome de rock. A sua namorada holandesa persegue-lhe o gosto, mas ele avisa que os melhores músicos de rock, os mais barulhentos, são os mais aptos para construírem as melhores melodias e as melhores baladas. Desconheço o assunto, mas acho-lhe uma certa lógica.

in Domingo - Correio da Manhã - 16 Outubro 2011

domingo, outubro 09, 2011

As recordações de um velho panamá

Conforme ensinavam os antigos, a meteorologia é uma ciência mais incerta do que o tempo que faz ao fim de semana. A minha sobrinha Maria Luísa pensa – e diz – que os Homem têm um ditado para tudo, o que não é rigorosamente verdade; há coisas que nos escapam. A meia-estação, conforme já referi ao leitor paciente e abnegado, é uma delas: trata-se daquele período que constitui, só por si, uma afronta ao guarda-roupa dos Homem de todas as gerações. O velho Doutor Homem, meu pai, considerava-se a si mesmo, nos dias em que aquela serenidade das montanhas descia até ao pátio do casarão de Ponte de Lima, um dândi. Isso devia-se ao seu gosto, não tão exagerado como às vezes pareço fazer crer, pelos velhos alfaiates do Porto, seres pacientes que, na geometria de um corte de fazenda, incluíam exigências quase infames que o velho causídico imaginava próprias de Saville Row.

A única coisa que me resta desse tempo é um velho panamá brasileiro, creme, tingido pelo tempo e preservado ao longo dos anos como uma recordação que os anos não escoaram totalmente. No último domingo, parte da família incluiu-me na sua peregrinação periódica ao Ancoradouro, um restaurante vizinho onde levamos visitas prezadas e amigos que não queremos desiludir quando Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, ou está de férias ou se sente ultrapassada pelos acontecimentos. Levei, portanto, o meu panamá – uma homenagem ao sol que devia ser de Outono e era, afinal, um prolongamento do Verão minhoto, discreto, suave e melancólico. Maria Luísa teceu várias considerações sobre o panamá (insisto que não se trata de um chapéu) e sugeriu perversidades tropicais; não houve tal. O meu panamá brasileiro é apenas uma recordação de velho – conservo-o há mais de cinquenta anos entre os bens que achei que valia a pena preservar. Depois do almoço, como sempre generoso, encaminhámo-nos para as mesas da esplanada – a fim de continuar a conversa, suculenta, sobre isto e aquilo. A Dra. Celina, a nossa bibliotecária de Caminha, que mora umas ruas acima, apareceu para o café e pediu a sua lista de recordações do panamá, acicatada por Maria Luísa. Nessa noite, íamos à ópera, ao Porto, ver ‘Sansão e Dalila’ (no meu caso, apenas o segundo acto), e por isso uma estranha loquacidade tomou conta do lugar. Falei de tudo: da loja onde o comprei, há mais de cinquenta anos, do honesto chapeleiro que mo recomendou com a garantia (na altura inútil) de longevidade, e até de um passeio até Santa Tecla. O essencial, claro, guardo para a próxima semana.

in Domingo - Correio da Manhã - 9 Outubro 2011

domingo, outubro 02, 2011

Do pobre futebol às graças do tempo

O meu sobrinho Pedro anda preocupado porque – diz ele – o seu clube de futebol “está com fraco rendimento”. O assunto não me comove extraordinariamente mas mantenho-me atento e finjo uma preocupação quase, quase solidária.

O velho Doutor Homem, meu pai, considerava o futebol um desporto muito digno desde que fosse disputado entre clubes ingleses, que ele julgava (na sua ingenuidade tocante) um alfobre de fidalgos do relvado, ou, em alternativa, entre equipas espanholas. Em vão, alguns de nós tentaram demonstrar que a natureza do futebol se confundiria com a das multidões, em geral, e que as excepções não faziam mais do que confirmar algumas das regras universalmente aceites por este grupo de quase misantropos reunidos sob o mesmo nome.

A preocupação do meu sobrinho pareceu-me, no entanto, honesta e, pior, sincera, conquanto fosse recebida com aquela indiferença natural entre os bárbaros que se dedicam a ser indiferentes, com a excepção, salvo erro, daquela vaga emoção de 1966 em que Portugal se classificou num lugar provavelmente superior ao normal e que agora não recordo.

Maria Luísa, sensata (uma qualidade que evito lembrar-lhe com medo de ofendê-la), recomendou-lhe que tivesse calma, que isso passaria, tal como quase todas as paixões acabam por passar.

Durante os anos da minha juventude – um período vago e pouco sentimental que foi da puberdade até ao epílogo da frequência da cadeira de Direito Corporativo – as paixões foram uma espécie de obrigação contratual, de qualquer modo muito mais simples do que a leitura dos ‘Estudos sobre a História dos Regimes Matrimoniais’, do severíssimo professor Paulo Merêa, de que recordávamos o interesse pelas coisas visigóticas, pouco populares mesmo naqueles tempos. Havia, entre mim e as jovens que ainda recordo dessa época, sobretudo a obrigação de não as pisar descuidadamente nos salões de baile e de evitarmos discutir futebol. Era tudo. O resto, eram regras de civilidade relativamente banais (por exemplo, usar gravata, ter algum sentido de humor e não mencionar o interesse nem pela Comissão de Reforma do Imposto de Capitais nem pelos trinados da guitarra do dr. António Carvalhal).

A minha sobrinha Maria Luísa, que tem uma vocação madura para historiadora, pretende que o interesse desmedido pelo futebol é uma espécie de inclinação pelas coisas que combinam com a vacuidade dos tempos. Eu não concordo e uma das razões é que nunca consegui entender verdadeiramente as razões que levam muitas pessoas a considerar o futebol uma arte, semelhante aos rabiscos da pintura moderna. Aliás, eu nem sei qual é o clube do meu sobrinho.

in Domingo - Correio da Manhã - 2 Outubro 2011