A doutora Teresa veio do Algarve
No domingo da semana passada tivemos de cumprir a
sereníssima obrigação mensal de almoçar no restaurante Ancoradouro. A operação
exige alguns cuidados durante o Verão porque, se os princípios se fizeram para
serem cumpridos, também é verdade que não se podem desperdiçar "manhãs
gloriosas" de praia como as dos últimos dias; é necessário, portanto,
conciliar o dever de parte da família se apresentar junto do toldo alugado à
época desde há cerca de cinquenta anos sem interrupção, com o compromisso de
nos apresentarmos à mesa a horas consideradas regulamentares. Os Homem são
gente exímia na arte do compromisso; às duas horas lá estávamos, em número de
oito, pedindo ou o gin inicial (a minha sobrinha Maria Luísa, por exemplo) ou a
Água de Melgaço com rodela de limão, deixando para trás uma manhã gloriosa de
praia.
A expressão "manhãs gloriosas de praia"
não me pertence; foi a dra. Teresa, acabada de regressar das suas férias no
Algarve, que a usou para as descrever, e certamente para as distinguir das
manhãs de Moledo. "Claro que não se compara", como a dra. Teresa acrescentou,
antes de regressar às colinas de Venade, mesmo acima de Caminha, onde as
agruras do clima não se pressentem como aqui, diante da Ínsua e do vulto de
Santa Tecla.
A verdade é que, quer durante a minha juventude e
quer durante a minha idade adulta, a praia não tinha existência social
propriamente dita. Estava a meio caminho entre o sanatório e o ginásio, como
nos "romances termais" de final de século, e envolvia-a uma aura de
romantismo fora de época, pouco português e certamente nada burguês. Dona
Ester, minha mãe, achava que frequentar a praia servia de terapêutica do corpo
e da alma, em simultâneo. Enquanto o meu pai ficava por algumas horas entregue
à sua biblioteca, "para aproveitar parte das férias", ela lançava-nos
às ondas frias e coroadas de sargaço, na crença de que corpos bronzeados
resistiam melhor às gripes, e de que o iodo era a essência requerida para
alimento das almas.
Não, Moledo não tem a doçura das águas algarvias. O
mar de Moledo desafia a consolação requerida por corpos fatigados por um ano de
trabalho. Se há época balnear, como se dizia no linguajar de antanho, é aqui
que ela nasceu, entre o perfume dos pinhais e a ventania que varre as ondas. De
vez em quando há uma manhã gloriosa de praia rasgando a neblina que cobre as ondas.
Tudo são mitos, explicava o velho Doutor Homem, meu
pai, sorrindo à ideia de explicar o apelo de Moledo. No fundo, foi em Biarritz,
e não nos trópicos, que ele pediu Dona Ester em casamento.
in Domingo - Correio da Manhã - 12 Agosto 2012
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