domingo, abril 25, 2010

Nuvens de cinza sobre Moledo

A minha sobrinha Maria Luísa admitiu que Portugal estava isolado do mundo porque não pôde regressar de Londres devido ao vulcão islandês. A presença da Islândia na biblioteca da família deve-se, naturalmente, a Pierre Loti e a ‘Pescador da Islândia’, que não tem rigorosamente a ver com a Islândia, e a ‘Viagem ao Centro da Terra’, de Júlio Verne, que nos envia por um túnel islandês até ao lugar onde as esferas se movem. A referência às esferas é extemporânea, uma vez que só uma pequena percentagem de leitores sabe que os nossos antepassados supunham que no centro da Terra existia um mecanismo que comandava os movimentos do planeta. Ai de nós.

Tirando isso, a Islândia era muito mais longe do que o pico enevoado de Santa Tecla ou as falésias de Ribadeo (onde os Homem de outras eras se deslocavam durante a temporada da ostras – eles eram leitores de Cunqueiro, especialmente o Tio Alberto, o bibliómano de São Pedro dos Arcos) – e, portanto, não existia com propriedade.
O velho Doutor Homem, meu pai, cuja formação intelectual (onde se incluía o corte dos fatos, copiados de Savile Row por um mestre alfaiate dos Clérigos) deve quase tudo a Londres, era mais cosmopolita e supunha – com razão – que o mundo se estendia pelo menos até às Hébridas, onde o Doutor Johnson peregrinou para repousar da literatura, da biblioteca e das tavernas à beira do Tamisa.

De qualquer modo, a família tinha do mundo uma ideia razoavelmente ilimitada. Tios afastados ou próximos, parentes vetustos, primos desagradáveis ou familiares obscuros instalaram-se em pontos díspares do velho império, do Brasil ao planalto central de Angola, do Alentejo (desde que fosse longe de Évora Monte) aos picos enevoados de Paredes de Coura. Simplesmente, o resto do mundo não existia enquanto lá não se pusesse um pé (excepção feita às minhas irmãs, que viajaram pelas Caraíbas e pelos spas tailandeses). A Islândia teria vulcões por sua livre vontade desde que não interferisse no andamento das coisas – porque a maior parte das viagens se faziam de comboio ou de carro, atravessando as noites profundas do velho continente ou as recordações da sua civilização.

Maria Luísa viu as coisas com algum ressentimento. Parte dos portugueses gemeu de tristeza por não ter sido atingida pela nuvem de cinza. Até Dona Elaine, a governanta de Moledo, durante o pequeno-almoço de segunda-feira passada, deu conta do seu orgulho, encantada: “O senhor doutor já viu? A nuvem já chegou aos Açores.” Felicitei-a. Mas olhei para o céu, temeroso.

in Domingo - Correio da Manhã - 25 Abril 2010

domingo, abril 18, 2010

Apesar da chuva chegará o Verão

A vida mudava todos os anos, quando começava a época balnear, eufemismo usado na velha casa de Moledo para assinalar um levíssimo aumento das temperaturas ao aproximar-se o São João. A data era, na verdade, um marco no nosso calendário familiar e coincidia com uma série de actividades nem sempre olhadas com benevolência pelos autóctones.

A minha irmã protestou durante muito tempo pelo facto de eu me referir à população local como "os autóctones". Ela supunha que o termo era desagradável ou transportava significados humilhantes. Tive de explicar, pacientemente, que "autóctone" se referia, com dignidade, aos naturais e habitantes da terra.

Para afirmar que se tratava de uma época como qualquer outra, e para que isso ficasse claro, Dona Elaine, a governanta que desde há anos assegura a sobrevivência da casa, recusava-se a participar de "reuniões desnecessárias", como ela chamava aos períodos de café e conhaque depois dos almoços de domingo, durante a Primavera de Moledo. O que Dona Elaine pretendia demonstrar ao que restava daquela família de desordeiros e devoradores bem alimentados é que o almoxarifado era assunto seu, fosse qual fosse a estação do ano, estivessem ou não ocupados os quartos da casa.

Na verdade, eu entendo-a bem. Habituada há cerca de vinte anos a lidar com esta família que a viu envelhecer mais um pouco, a antiga emigrante brasileira (regressou do lado de lá como herdeira de um tio instalado no Rio) encolhia os ombros e seguia em frente. Ela sabe que o Verão é um mundo à parte durante o qual a natureza age por sua conta e risco, de acordo com leis imutáveis. O que acontece ao eremitério de Moledo durante o Verão é ser invadido por uma legião de sobrinhos que se encarrega de introduzir alguma indisciplina no refúgio do Matusalém da família. Essa legião cresceu consideravelmente e eu aprendo bastante durante a temporada, sobretudo sobre o mundo que nos espera.

Como estou a salvo, por questões meramente biológicas, de frequentar esse universo, limito-me a sugerir que não participarei, com eles, em cerimónias rituais para fumar haxixe ou entrar nas águas do mar de Moledo – assunto sobre o qual já falei na semana anterior. As minhas irmãs insistem em que eu devo ser poupado a esse festim estival; os meus irmãos não opinam; a minha sobrinha mais velha, Maria Luísa, informa que de Braga (onde vive) até Moledo "é um salto" e que pretende ocupar o seu quarto habitual durante os quinze dias em que assaltará a biblioteca; eu tomo nota da evolução da família, como um discípulo de Darwin.

in Domingo - Correio da Manhã - 18 Abril 2010

domingo, abril 11, 2010

Memórias de Moledo com a chegada do Sol

O mundo era provavelmente mais triste nesses anos em que o meu avô percorria as colinas do Douro, descendo aqui e ali de um comboio vagaroso que se equilibrava sobre um rio escuro e profundo. As suas paragens coincidiam com a proximidade das quintas onde o velho administrador, contabilista e procurador (tarefas que desempenhava com competência) pernoitava entre proprietários ingleses, vinhateiros do antigo regime e fidalgos que discutiam genealogia. Discutia com eles as minudências das exportações, dos créditos bancários, do preços dos terrenos e – em anos maus – dos empréstimos a haver.

Um antepassado dos Homem morrera ali numa escaramuça dos anos trinta (do século XIX), quando a guerra civil se estendera às margens do Côa, do Távora e do Douro. O meu avô era discreto; se tivesse vivido nesse tempo teria sido um cartista durante a Regeneração, esquecendo a má redacção com que a Carta viera do Brasil. Aprendera, pelos seus próprios meios, que o trabalho não é um valor em si mesmo e que se limita a proporcionar o mais inestimável dos bens: o tempo.

Eu via-o regressar das colinas do Douro, carregado de cabazes e livros de assentos, com a sensação de que recuperara uma parte do seu tempo. O seu ajudante nestas viagens dos anos trinta e quarenta foi um fidelíssimo escriturário portuense que o acompanhou até à morte nos mistérios da contabilidade e da administração – e que lhe herdou o escritório e a clientela, que manteve durante muitos anos. Era um homem bom e sem história, em quem os negociantes e produtores de vinho depositavam confiança e dinheiro. Ele, sim, com a sua modéstia de burguês do Porto, ensimesmado e discreto, seria a figura de um romance. Teve as suas primeiras férias quando o velho Doutor Homem, meu pai, comprou este pinhal onde hoje se ergue o eremitério de Moledo, construído por mim no final dos anos setenta. Veio, com a família, dizer-nos que era inútil metermo-nos em agricultura; bastou-lhe olhar os terrenos, que alcançavam as colinas que depois seria desbravadas por estradas que levariam às praias de hoje.

“Então, não se faz vinha?”, perguntou-lhe o velho Doutor Homem, meu pai, cujos contactos com a agricultura se resumiam a ter ouvido falar de hortas de onde se colhia salsa e onde cresciam ervilhas.

“Não se faz vinha.” Foi mais do que uma opinião. Daí em diante, improdutivos, ficámos quase românticos, olhando o nevoeiro entre as agulhas dos pinhais. Hoje, para lá dos muros da casa, observo as dunas e a chegada dos primeiros voluntários que se depositam sobre a areia, venerando o sol do Moledo.

in Domingo - Correio da Manhã - 11 Abril 2010

domingo, abril 04, 2010

Acordar cedo uma vida inteira

O frio polar demora-se mais este ano nos areais de Moledo. Era justamente sobre Moledo que o velho doutor Homem, meu pai, gostava de relembrar que as praias de águas frias são um privilégio das classes abastadas, que se podem dar ao luxo de sofrer as agruras do mar do Minho como uma espécie de disciplina ou de sofrimento pessoal que os alivia de outras culpas; a generalidade das pessoas procura estações balneares mais amenas e onde existe aquilo a que dão o nome de turismo. Os velhos podem dar-se ao luxo de esperar que, nas manhãs de Moledo, o nevoeiro levante e o céu se ilumine; não têm pressa nem guardam uma finalidade para uma existência de que vislumbram um termo. E, tirando os velhos, apenas os mais jovens, que desconhecem a importância de acordar cedo, de manter horários e de tomar o pequeno-almoço antes das nove horas da manhã.

Habituei-me a acordar cedo por motivos de saúde, recuperando de uma série de consecutivas gripes que Dona Ester, minha mãe, acreditava que se curavam com ares do campo e da praia, transitando entre os pinhais do Minho e os areais batidos pela ventania galega. Logo de manhã, essa operação ginástica obrigava-me a despertar fisicamente e a apreciar coisas a que os meus sobrinhos raramente assistem: o pão estaladiço, o cheiro do café numa cozinha, a frescura do primeiro raio de sol, a maré vazia na praia. Até há pouco tempo, raramente conseguia companhia – para me restringir à família propriamente dita – para as minhas manhãs. Maria Luísa, durante as suas férias em Moledo, esforçava-se por não perder o pequeno-almoço de Dona Elaine, chegando sempre à sala de jantar a horas do almoço, mas convencida de que a madrugada estaria ainda para despontar. Esforcei-me, durante muito tempo, por adivinhar que coisas extraordinárias aconteciam à noite e que obrigariam tanta gente a privar-se do sono e do repouso a horas decentes.

Em determinadas circunstâncias (geralmente durante a sua semana integralmente passada no estio de Ponte de Lima, quente, abafado, cheio de romarias nas colinas e de bridge aos serões), o velho doutor Homem, meu pai, costumava fornecer o exemplo de Churchill, que se levantava tarde. É verdade; também Estaline acordava pelo meio-dia. Mas, durante as férias, diz-se que Churchill se levantava cedo para poder apreciar – como pintor que era – as cores do amanhecer. As cores, não sei; mas o apetite devorador, conheço-o de memória, antes de iniciar o regime alimentar da terceira idade. Mesmo com este frio polar pressinto que as manhãs têm ainda o mesmo encanto de há um século. Quanto às noites, pressinto que sejam apenas mais animadas.

in Domingo - Correio da Manhã - 4 de Abril 2010