domingo, fevereiro 22, 2009

A maluquice (1)

A minha sobrinha acha que as mulheres – eu reproduzo a sua linguagem, com aquele pudor a que a idade e a saúde me obrigam – 'andam malucas'. Não sei como chegou Maria Luísa a essa conclusão, tão fora de época (a Tia Benedita protegia-se dos meses fatais em que a Primavera vinha tingir o Minho com as cores da devassidão), mas parece-me exagerada.

Na verdade, a condição de celibatário, longe de me afastar do convívio com as senhoras do meu tempo, aproximou-me delas como uma ligeira ameaça, quase inofensiva, passando do estatuto de observador ao de parte interessada. O 'meu tempo' é uma data distante, da qual guardo uma recordação vaga, desleal, ténue, melancólica e até desfocada, porque geralmente somos míopes para averbar as nossas memórias. Talvez por isso Dona Elaine, a governanta deste eremitério de Moledo, não se canse de informar-me de que no mês próximo cumpro oitenta e nove anos preguiçosos.

O velho doutor Homem (meu pai), que era um português avisado, pediu-me algumas vezes para não discutir três coisas com o meu avô, administrador de quintas do Douro e historiador, por conta própria, dos caminhos--de-ferro portugueses: religião, a Convenção de Évora Monte e os atrasos no comboio rápido entre Campanhã e Barca d’Alva. Se bem que nem as quintas do Douro nem os caminhos-de-ferro fossem coisas suas, ele cuidava de ambas com profissionalismo e pundonor inexplicáveis para os dias de hoje. Claro que, quase mudo, discretamente, me pedia para não comentar em público 'a vida das senhoras'.

Um cavalheiro devia, portanto, remeter-se aos seus assuntos. Não porque a curiosidade seja essencialmente uma prerrogativa feminina, mas porque os assuntos de cavalheiros andam ligeiramente descuidados. Escrevo-o com pena, naturalmente; mas o leitor sabe que o meu tempo é ainda o do naufrágio do Titanic. Quando a minha sobrinha Maria Luísa se queixa, com aquele sarcasmo feito de melancolias disfarçadas, sobre 'já não haver homens', eu remeto-me à memória, que é um refúgio para incapazes ou para convalescentes. Também já ouvi murmurar sobre 'já não haver senhoras', mas é assunto que me não diz respeito. Antigamente, queixei--me várias vezes sobre essa decadência, mas o tempo foi passando. Penso, hoje, que educámos as novas gerações para que elas fossem mais felizes e, provavelmente, mais apresentáveis. A avaliar pelo retrato de conjunto, não conseguimos nem uma coisa nem outra. Tudo isso para quê? Para que se chegasse à conclusão de que as senhoras 'andam malucas'.

in Domingo - Correio da Manhã - 22 Fevereiro 2009

domingo, fevereiro 15, 2009

Santa Comba

O velho Doutor Homem, meu pai, coleccionou, ao longo da vida, uma série de historietas sobre o dr. Salazar. Ele justificava o dispêndio de tempo com a ideia, absurda, de um dia escrever um romance sobre o ditador. Na verdade, qualquer romance centrado na figura do seminarista beirão necessitaria de muita imaginação e de muito mais atrevimento; o problema é que o velho causídico, habituado a episódios escandalosos ou vibrantes dos tribunais do Porto ou dos velho bairros da Foz, passou a vida desiludido com a falta de substância por parte do presidente do Conselho.

O meu pai imaginava-o apenas. O consumo de metáforas excedia a sua paciência – snob e despropositado, ele via-o vestido na Saville Road de Santa Comba Dão, inspirado pela destino e pela missão que adoptara para a sua vida. O velho Doutor Homem, meu pai, criado com a falsa superficialidade de quem conhecia Londres mais do que Lisboa, leitor do 'Telegraph', dizia que o dr. Salazar tinha a profundidade de um personagem de má literatura. Era falso. Salazar não entrava na galeria dos personagens literários; limitava-se a reproduzir, à escala do país, a sua visão de um pequeno mundo sitiado por Casas do Povo, fachadas de Raul Lino e folhas pautadas par anotar despesas e receitas à boa maneira de uma dona de casa dos anos trinta. O retrato, visto desta maneira, é fascinante. Criado no seu cosmopolitismo londrino, o velho Doutor Homem, meu pai, queria um país que não era bem o seu; ele sonhava com lordes ocupando o seu lugar na discussão do destino do império, com clubes de cavalheiros que amavam a liberdade e com universidades onde se trabalharia com entusiasmo. Esse não era o seu país – era uma boa imagem, mas não era uma imagem real.

Pelo contrário, o dr. Salazar conhecia bem o país. Sabia que a pátria era astuta, manhosa, cheia de hortas e de canaviais, de exemplos morais em que a elegância fora substituída pela mediocridade da paz doméstica e das visitas pascais. Esse era – e é ainda – o verdadeiro país, a galáxia de vilas habitadas pelos personagens de Camilo e de Eça, pelos restos de glória deixados pelo passado. Se o velho Doutor Homem, meu pai, sonhava com um país, o dr. Salazar desenhava o seu rosto, cheio de rugas pálidas e austeras, economia doméstica e moral nos terraços das aldeias. O país não mudou. E o dr. Salazar, na verdade, não morreu. Reencarnou.

in Domingo - Correio da Manhã - 15 Fevereiro 2009

domingo, fevereiro 08, 2009

Os cavalheiros da indústria

O velho doutor Homem, meu pai, dizia – já no seu tempo de plena maturidade – que os velhos "cavalheiros da indústria" tinham desaparecido. Ele habituara-se a encontrar sinais dessa raça perdida e quase anónima que, pelo Minho fora, espalhara uma indústria deficiente e inócua mas que, pelos padrões da pobre Pátria, era a nossa pequena modernidade.

Culpando o dr. Salazar pela má sorte do destino da Pátria (ele atribuía-lhe defeitos vários, desde as botinas engraxadas até à cegueira dos anos quarenta – o meu pai sonhava com a Inglaterra num país sem lordes nem eleitores), restava-lhe ver virtudes insuspeitas em manifestações do génio produtivo português. Às vezes eram pequenos proprietários enriquecidos na emigração do Brasil, industriais que espreitaram a sua sorte, comerciantes que não se resignaram; nisto, o velho Doutor Homem, meu pai, via a salvação da Pátria, desde que o Estado se não metesse em demasia. Ele tinha, no fundo, esperança nos ricos dessa época, velhos cavalheiros que deixavam um donativo com que se iriam pagar as fardas de uma banda de música, que pagavam do seu bolso a construção de uma escola copiada dos esquissos de Raul Lino, que exorbitavam e ofereciam uma biblioteca destinada a ser esquecida numa província ignorante, iletrada e preguiçosa.

Ele ainda não conhecia os romances de Mrs. Trollope, modelo posterior das novelas românticas passadas no campo inglês – com os seus muros reconstruídos, os seus relvados victorianos, as suas chuvas arrancadas às páginas das irmãs Brontë. Haveria um castanheiro frondoso (tinha essa obrigação literária) e uma ruína, um caminho entre pastos verdejantes, uma aldeia limpa. Portugal nunca foi assim. Os filhos dos "cavalheiros da indústria" dedicaram-se à "engenharia" e habituaram-se a carros caros e a whiskies de má qualidade. Capitalistas de um país sem capitalismo, sobreviveram e legaram fortunas desiguais. Ao contrário dos seus maiores, que viam na cultura uma exigência de elegância para poderem comportar-se em sociedade, os ricos dos anos setenta ganharam o gosto pelo exibicionismo e um talento desproporcionado para a lassidão e para o desejo de imortalidade, coisas que andam a par.

Quando dizia que já não havia "cavalheiros da indústria", ele era um nadinha proudhoniano, embora não o soubesse. Habituado a desconfiar do dr. Salazar, sonhava com uma "sociedade" que se liberta pelo talento, pelo esforço e pelo interesse. Ele não viu, e teve sorte, os dias de hoje.

in Domingo - Correio da Manhã - 8 Fevereiro 2009

domingo, fevereiro 01, 2009

A pedra no rim

Temperamento seco, isso dizia da Tia Benedita o velho Doutor Homem, meu pai. A observação era injusta se tomada à letra – a Tia Benedita era um ser amável e turbulento em simultâneo. Se me perguntassem de quem gostaria de ter sido biógrafo eu teria escolhido (dado que o meu pai não tem biografia) dois personagens que marcaram a minha vida como cometas que arrastaram consigo uma poeira de génio e de talento, e ambos da minha família: o Tio Alberto, bibliófilo de S. Pedro dos Arcos, aventureiro, jurista e gastrónomo; e a Tia Benedita, que não deixou obra, não deixou seguidores, não deixou nada de seu senão a memória da uma existência limiana.

O Tio Alberto cozinhou e inventou receitas – guardadas, com a graça de uma arquivista ciumenta, pela minha sobrinha Maria Luísa –, viajou bastante, amou o suficiente, acumulou livros que fizeram da sua casa nas encostas do Minho uma estante sublime e cuidada. Os seus amores são famosos, a sua vida foi discreta; a sua cozinha era repentista, brutal, suculenta, masculina; as suas viagens ajudaram a estender o planisfério muito para lá do que lhe estava vedado – chegou ao Cáspio, enamorou-se das Américas, subiu às montanhas de África, atravessou dois desertos, e morreu quando os hibiscos e magnólias de São Pedro de Arcos retocavam com as suas cores a Primavera de 1968, num mês de Abril que recordava a imensa paleta do Criador.

A Tia Benedita, a derradeira matriarca dos Homem, limitou-se a cumprir um destino ingrato e uma tarefa dolorosa – a de prolongar o brio do ramo verdadeiramente ultramontano da família. Mantendo as excentricidades de há dois séculos, a Tia Benedita não foi apreciada como devia. Enviuvou cedo demais, envelheceu tarde. Conheceu apenas um amor, um país e uma família. A isto se juntou uma casa, o casarão de Ponte de Lima com as suas trepadeiras, canteiros de lírios e gladíolos, além do vasto jardim de camélias – e o retrato do Senhor Dom Miguel ao fundo do corredor, como um amuleto, uma recordação e um aviso: o de que os Homem tinham um sinal a marcá-los.

A popularização do seu "temperamento seco" não se deve à sua severidade ou ao seu miguelismo sem moderação. Foi o velho Doutor Homem, meu pai, que a apreciava acima de toda a suspeita, citando-lhe os anacronismos e as embirrações (a República, Afonso Costa, e o Brasil como fonte de imoralidade), criou a fama ao condoer-se com a sua pedra no rim. Atribuía a maleita à pouca água que a senhora bebia. Ficara seca.

in Domingo - Correio da Manhã - 1 de Fevereiro 2009