domingo, setembro 02, 2012

A nova insónia dos portugueses


Dona Elaine, a governanta deste eremitério, é a mais frequente utilizadora do aparelho de televisão que foi actualizado no ano passado, depois de muita insistência de parte dos meus sobrinhos. Eles acham que um velho conservador deve actualizar-se em matéria de tecnologia mesmo que a não use, pela simples razão de ser visitado, durante o Verão, por uma horda de sobrinhos que bivacam na casa de Moledo como supõem que Lawrence da Arábia se instalava nos declives do deserto. A única diferença em relação a um acampamento no deserto é que, além da areia (que só existe dos pinhais para baixo, na direcção do mar), eles assistem a vários programas de televisão que desconheço mas que, na generalidade, começam por volta da meia-noite, hora a que, em geral, já não estou acordado.

A minha vida começa cedo, a tempo de tomar o pequeno-almoço na cozinha e antes de a neblina de Moledo levantar. Por vezes, Dona Elaine tem o aparelho de televisão ligado a essa hora e eu surpreendo-me porque, no dizer dos meus sobrinhos, continuo a pensar que as emissões abrem ligeiramente ao fim da tarde e terminam com o hino nacional. Acontece que, para um velho que atravessou sofrivelmente o século passado e está inexplicavelmente vivo neste, a televisão está ligada ao que antigamente se chamava ‘serão’. Viam-se as notícias (que eram bem lidas, mesmo que maçadoras), tomava-se boa nota das observações do Dr. Anthímio de Azevedo sobre meteorologia – e o resto do tempo televisivo era ocupado com programas geralmente desinteressantes, salvo quando se inventou o ‘Zip Zip’ (que provocou no velho Doutor Homem, meu pai, um acesso de esquerdismo debelado meses depois) ou uma coisa chamada ‘selecção nacional’ jogava futebol. No entanto, a misantropia dos Homem não chegou ao ponto de desconhecer, ao longo dos tempos, toda a miséria que acontecia na pantalha do televisor que era substituído todas as décadas, suponho.

As telenovelas portuguesas, no entanto, inquietam-me bastante. Dona Elaine não perde uma e conhece os nomes das personagens como o Tio Alberto conhecia os apelidos dos cantores de ópera do seu tempo. Eu vejo de vez em quando (de mês a mês) um episódio e toda a gente me parece triste, zangada ou a necessitar de conserto gramatical. Quando vou para o quarto, procurando lembrar-me da passagem do livro que me espera desde a noite anterior, Dona Elaine está ainda acordada e concentrada como se seguisse a vida do Quixote. Dizem-me que os portugueses se deitam mais tarde agora, por causa das novelas. Isto explica muitas coisas.

in Domingo - Correio da Manhã - 2 Setembro 2012