A nova insónia dos portugueses
Dona Elaine, a governanta deste eremitério, é a mais
frequente utilizadora do aparelho de televisão que foi actualizado no ano passado,
depois de muita insistência de parte dos meus sobrinhos. Eles acham que um
velho conservador deve actualizar-se em matéria de tecnologia mesmo que a não
use, pela simples razão de ser visitado, durante o Verão, por uma horda de
sobrinhos que bivacam na casa de Moledo como supõem que Lawrence da Arábia se
instalava nos declives do deserto. A única diferença em relação a um
acampamento no deserto é que, além da areia (que só existe dos pinhais para
baixo, na direcção do mar), eles assistem a vários programas de televisão que
desconheço mas que, na generalidade, começam por volta da meia-noite, hora a
que, em geral, já não estou acordado.
A minha vida começa cedo, a tempo de tomar o pequeno-almoço
na cozinha e antes de a neblina de Moledo levantar. Por vezes, Dona Elaine tem
o aparelho de televisão ligado a essa hora e eu surpreendo-me porque, no dizer
dos meus sobrinhos, continuo a pensar que as emissões abrem ligeiramente ao fim
da tarde e terminam com o hino nacional. Acontece que, para um velho que atravessou
sofrivelmente o século passado e está inexplicavelmente vivo neste, a televisão
está ligada ao que antigamente se chamava ‘serão’. Viam-se as notícias (que
eram bem lidas, mesmo que maçadoras), tomava-se boa nota das observações do Dr.
Anthímio de Azevedo sobre meteorologia – e o resto do tempo televisivo era
ocupado com programas geralmente desinteressantes, salvo quando se inventou o
‘Zip Zip’ (que provocou no velho Doutor Homem, meu pai, um acesso de
esquerdismo debelado meses depois) ou uma coisa chamada ‘selecção nacional’
jogava futebol. No entanto, a misantropia dos Homem não chegou ao ponto de
desconhecer, ao longo dos tempos, toda a miséria que acontecia na pantalha do
televisor que era substituído todas as décadas, suponho.
As telenovelas portuguesas, no entanto, inquietam-me
bastante. Dona Elaine não perde uma e conhece os nomes das personagens como o
Tio Alberto conhecia os apelidos dos cantores de ópera do seu tempo. Eu vejo de
vez em quando (de mês a mês) um episódio e toda a gente me parece triste,
zangada ou a necessitar de conserto gramatical. Quando vou para o quarto,
procurando lembrar-me da passagem do livro que me espera desde a noite
anterior, Dona Elaine está ainda acordada e concentrada como se seguisse a vida
do Quixote. Dizem-me que os portugueses se deitam mais tarde agora, por causa
das novelas. Isto explica muitas coisas.
in Domingo - Correio da Manhã - 2 Setembro 2012
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