domingo, novembro 29, 2009

A chegada do Inverno em Moledo do Minho

Já por várias vezes me interroguei sobre o momento em que começa o Inverno. Os almanaques de antanho providenciavam uma vasta lista de afazeres de Inverno, a que um botânico amador não podia furtar-se. O aquecimento global, a televisão a cores e os discos compactos, a par da educação sexual e das revistas de domingo encarregaram-se de mudar o meu mundo que, se não estava organizado segundo as regras do ‘Borda d’Água’ ou do ‘Seringador’, obedeciam ao privilégio que nesta casa sempre se concedeu a Dona Elaine, a governanta do ermitério de Moledo.

Dona Elaine acredita que lhe cabe um papel preponderante e privilegiado acerca da organização das estações do ano – e tem inteira razão. O Verão não começa em Moledo com a chegada de visitantes para a época balnear e o tépido iodo do Minho – mas quando Dona Elaine decide mudar as ementas de fim-de-semana. Da mesma forma, o Inverno chega a Moledo quando Dona Elaine muda a roupa das camas e decide que temos de nos proteger dos sobressaltos do termómetro. Já tentei explicar-lhe que o higómetro é bem mais útil nestas circunstâncias, mas a velha sabedoria do Minho e das serranias de Cerveira (de onde ela arranca ditados aos penedos mais agrestes, dado ter nascido numa das aldeias do concelho) ainda não se habituou às coisas modernas. Medir a humidade da atmosfera não é com ela. Prefere a menção a um fenómeno regional, “a friagem” – uma leve brisa que vem da foz do Minho e se espalha pelo litoral que se despede da melancolia do Outono.

É aí que começa o Inverno, e não na contiguidade do Natal. Aí é Inverno pleno. O Outono de Moledo é composto daquela poesia de agulhas dos pinhais, de hibiscos derrubados e de canteiros dispostos para receberem – mais tarde – os bolbos permitidos. Merece elegias, sonetos, despedidas, não sobretudos ou chapéus (que já se não usam). Depois, o perfume da lenha acumulada durante o Verão, o primeiro torpor causado pela neblina da tarde. Eu bem recomendo o estudo do higómetro em vez do termómetro, mas em vão. A humidade do ar, as gotículas presas nas folhas das japoneiras não a comovem, porque acha que o Minho é o reino da humidade e dos nevoeiros. Dona Elaine olha, então, para as colchas mais antigas e dispõe-se a mudanças radicais porque “anda aí uma friagem e começam os cieiros”.

Contra estas evidências, Novembro é o mês ideal para as recordações de um velho. A chuva desce pelas valetas e transforma Moledo numa abadia escocesa onde o pregador se ausenta durante a semana, aguardando que ao domingo venha aquela luz amarela tingir as varandas. Ai de nós, amadores de meteorologia.

in Domingo - Correio da Manhã - 29 Novembro 2009

domingo, novembro 22, 2009

Meditações sobre a passagem do tempo

A minha sobrinha voltou à carga e reafirmou que já não há cavalheiros. Ela é uma camiliana que só leu o essencial de Camilo, o que a coloca num patamar trinta ou quarenta vezes acima do comum dos seus compatriotas – além disso, fá-lo recuperando do génio de São Miguel de Ceide os aforismos mais reaccionários mas emprestando-lhes uma aura muito democrática.Esse esforço é considerável. Camilo era, bem vistas as coisas, o único miguelista do seu tempo, tal como a Tia Benedita era, até à sua morte, a única miguelista acima do Zêzere. O velho Doutor Homem, meu pai, apreciava em ambos os tons velhacos e os anacronismos que lhes emprestavam doçuras cómicas: eram gente do seu tempo, mas viviam fora dele. A “escola moderna” tentou encontrar em Camilo os sinais de um evidente “carácter democrático”, coisa que não existe – nem nele nem em Alexandre Herculano, o pessimista dos pessimistas. O mesmo acontece, ai de nós, com Camões, o vate dos vates que cabe em todos os panteões. Os republicanos fizeram de Camões o poeta nacional – e de “Os Lusíadas” o épico de todos os patriotas, o grande humanista e o “imperdível humano”, cheio de caridade e de simpatia. Ora, nada de mais absurdo do que esquecer que Camões descreve os marinheiros portugueses como celerados que espalharam a morte e partiram pelos mares em busca de fortuna e de prazer, coisa muito distante e diferente daquilo que o espírito moderno exige aos seus poetas – que sejam modelos de civismo e de bom comportamento moral. Os marinheiros de Camões eram marinheiros da época: mataram com pertinácia e empenho, violaram pelo Índico fora, fizeram prisioneiros em África e no Ceilão – não são gente modelar que se convide para um jantar de sábado numa casa de família. Éramos assim. Éramos bárbaros e selvagens.

O mesmo com Camilo; querer transformá-lo em escritor democrático e, até, com ideias socialistas, é como transformar a Maria da Fonte numa republicana do princípio do século. A verdade é que as pessoas têm horror a encarar o que amam ou lhes dá prazer como aquilo que são: o que são. Camilo era um homem do “antigo regime”, irritavam-no os modernos e a “ideia nova”, essa mistura de democracia e proudhonismo. A minha sobrinha Maria Luísa, que acha graça aos reaccionarismos de Camilo (saborosos e paradoxais, como convém), recusa-se a aceitar que gosta de um autor como Camilo por aquilo que Camilo é, de facto.

O mundo está cheio destes paradoxos. Ao mencionar que já não há cavalheiros, Maria Luísa olhava para o Minho de hoje e repetia as observações de Camilo sobre os fidalgos das Terras de Basto no seu tempo. Já nesse tempo tinham desaparecido.

in Domingo - Correio da Manhã - 22 Novembro 2009

domingo, novembro 15, 2009

Uma fortuna demasiado discreta

Os homens procuram a fortuna onde quer que ela esteja. Um dos velhos tios da nossa genealogia emigrou para o Brasil depois de um caso amoroso que lhe consumiu anos de tranquilidade. O argumento, usado durante todo o século XX, era diferente: partiu em busca da fortuna. A família nunca fez muitas perguntas sobre a história, e ele regressou nos anos sessenta para se recolher a uma quinta nos arredores de Afife, de onde via o mar, os cobradores de impostos e um resto de arvoredo que o separava das montanhas. Do Pernambuco trouxe, de facto, a fortuna.

Os portugueses não andaram pelo mundo fora para, nas palavras de hoje, “criar riqueza”. Para “criar riqueza” é necessário disciplina, um plano, fundos, vontade férrea – e uma espécie de inteligência que não se produzia em Coimbra (ai de nós) nem nos Ministérios: a que estava relacionada com as coisas práticas e com o chamado “longo prazo”. Assim, nas colónias ou onde quer que fosse, os portugueses enriqueceram sem criar riqueza, ou seja, fizeram fortuna. Depois, por vaidade e, em alguns casos, por embirração com a pátria, também realizaram grandes feitos e deixaram obra. Um português gosta de deixar obra, da mesma forma que um pai de família do Minho gosta de prover os seus filhos com uma herança.

Os holandeses, que ocuparam o Pernambuco durante alguns anos, não se limitaram a explorar o açúcar brasileiro – levaram bibliotecas e arquitectos, construíram jardins e pontes, estudaram a botânica dos trópicos, lançaram as bases de uma pequena civilização entre a barbárie da época. Os bárbaros, digamos, eram os plantadores de cana de açúcar. Quando a exploração local começou a ficar deficitária, de Haia mandaram-nos regressar, coisa que a batalha de Guararapes acelerou em definitivo. Um dos antepassados dos Homem governou episodicamente o forte de Itamaracá, de onde os Orange holandeses foram expulsos.

A fortuna do tio Alfredo nunca levantou suspeitas, por pudor – era discreta e dava-se ao luxo de não ser exibida. Ao contrário dos torna-viagem do início do século, a quinta de Afife era um prodígio de discrição e de sensatez. O tio Alfredo era um ser moral que trazia na pela o ferrete dos trópicos. A tia Benedita, a matriarca da família, nunca gostou dele; não por ser rico, mas porque suspeitava que, no intervalo das colheitas e do desbravamento de terras conquistadas ao sertão, ele tinha sucumbido à luxúria local e se deixara viver em pecado. Era verdade. Viveu em grande, fez fortuna, cumpriu um destino. Morreu tranquilamente, a meio de uma merenda de melancia.

in Domingo - Correio da Manhã - 15 Novembro 2009

domingo, novembro 08, 2009

Eu, o conservador diante da mudança

Para abreviar, a minha sobrinha Maria Luísa acha que um conservador pertence ao jazigo de família – onde, além da Tia Benedita, repousam os restos mortais de avoengos e antepassados que combateram pelo senhor Dom Miguel. Assim sendo, o meu lugar entre os vivos está concedido de empréstimo enquanto não regresso ao lado de lá do mundo – porque “o mundo” é um lugar onde vive gente civilizada que ama o progresso, a informática, a biologia molecular, os casamentos entre homossexuais e o vegetarianismo. Já tentei por várias vezes desiludi-la, reafirmando que o mundo vale pelo combate entre aqueles que acham que vale a pena mudá-lo porque isso dá sentido às suas vidas, e os que acham que a vida há-de ter (ou não) um sentido independentemente das mudanças do mundo. Debalde a informei sobre como era relativa a classificação. A ideia de que um conservador não merece o chão que pisa parece-me altamente valorizada por anos e anos de mudanças na direcção de vários abismos. Há mudanças que são mais perigosas do que a manutenção das coisas como estão; e há pessoas que se recusaram a mudar o mundo por acharem que mais valia esperar que o mundo estivesse disponível para ser mudado. Mas vivemos na era da velocidade – as coisas têm de ser feitas e têm de ser feitas depressa. O que passa, já passou (como o tempo); o que está para vir é já uma concessão, a crédito, ao tempo presente.

Maria Luísa acha que não tento reerguer o muro que separa o jardim do pinhal que ilumina as traseiras da casa de Moledo por puro conservadorismo. Tentei explicar-lhe que não; que era por preguiça. Mas o argumento não colheu e ainda bem: gosto de muros caídos e de pinhais que resistem ao tempo, tal como gosto de um mundo que tem prazer em conservar ruínas e inutilidades. Sou um representante dessa minoria que prefere ser livre a agrilhoar-se a compromissos com o improvável. Não faço juízos sobre a moralidade dos outros, agradecendo que não me obriguem a seguir pelo caminho dos outros. Reconheço que é necessário mudar coisas no mundo – mas sei, pela história dos últimos duzentos ou trezentos anos, que as mudanças bruscas e as revoluções não apenas relembram a triste condição do género humano como se limitaram a substituir uma tirania por outra. E não sou um escolho no meio do “progresso moral” da sociedade; não me incomoda o casamento entre homossexuais, apenas peço que não se transforme em regra essa novidade. Um conservador encolhe os ombros. Vê o movimento dos astros e considera, com largueza, que há coisas que não pode mudar e pronto.

in Domingo - Correio da Manhã - 08 Novembro 2009

domingo, novembro 01, 2009

Recordações de amor num mundo antigo

O mundo não foi feito para ser perfeito. Na semana passada mencionei as viagens do meu Tio Alberto – o mais inconsolável viajante da família, contemporâneo dos anos de oiro da década de cinquenta e sessenta – e perguntava-me por que razão não saí eu do Minho. Saí. Saí e voltei, como todos os seres com medo de se esquecerem do caminho de casa.

As minhas viagens foram sempre uma profilaxia do espírito ou, então, uma obrigação ditada pelos deveres familiares e pelo calendário das estações. Herdei esse ritmo: o velho Doutor Homem, meu pai, suspirava quando chegavam os primeiros dias de Primavera, sabendo que se aproximavam aqueles tempos de asfixia em que teria de dispensar a pátria e os seus conterrâneos para poder sobreviver a ambos. Eram viagens planeadas com o rigor de um teodolito – e cujo plano se alterava permanentemente, consoante a bolsa e a disposição dos Elementos. Várias vezes partimos – a família ocupava o velho carro com parcimónia e sentido da economia – para Biarritz com a sensação de que nunca lá chegaríamos, tal era o seu medo (justificado) de encontrar visitantes do Porto a transformar numa extensão da Foz aquilo que era um retrato das velhas férias românticas da desaparecida nobreza europeia. Tratava-se de uma promessa permanente: visitar Biarritz. Foi lá, numa tarde de cinza enevoada, que o velho Doutor Homem, meu pai, pediu Dona Ester em casamento. Ele conhecia o mundo, tinha profissão e vestia fatos de ‘tweed’, uma excentricidade britânica; ela frequentava Biarritz e não se constipava nem tinha medo do sol de Verão. Estavam talhados um para o outro, mesmo que não fossem um casal perfeito. Dona Ester nunca impediu as obsessões triviais ou extravagantes de um advogado bibliófilo do Velho Porto, compreendendo que um homem deve respirar o ar que respira, ou fenece; o velho Doutor Homem, meu pai, deve ter lido todos os romances de D. Agustina antes de ela os ter escrito (com aquela sabedoria inteligente que as nossas esquerdas nunca desculparam), porque percebia que o poder oculto, o poder secreto, o poder – finalmente – pertenceria de pleno direito à sua mulher e a não a ele. Para isso contribuíram anos e a anos de compreensão e de insinceridade – coisas que estão na base do respeito e da reservada sensualidade familiar.

Vistos de fora, pareciam estranhos num mundo de gente conhecida. Mas uma cumplicidade sagrada e profunda unia-os na vida e prolongou o amor: era aquela indiferença “ao romance”, o desprezo pelo romantismo lamechas. Eram gente como hoje se encontra raramente.

in Domingo - Correio da Manhã - 1 Novembro 2009