Ser conservador
Os portugueses deviam ser mais conservadores. Geralmente, ouço queixas em sentido contrário – que somos muito conservadores. Não acho. Os portugueses gostam muito de mudar e, pior do que essa vontade absoluta de mudar a todo o custo, é que não sabem a razão das mudanças que aceitam, desejam e defendem.
Este desejo de mudança perpétua é bem capaz de ser sinal de uma fadiga do espírito; à falta de melhor, muda-se, altera-se a decoração da sala ou mudam-se os quadros de família, o que constitui um perigo porque as famílias, em geral, constituem uma herança impossível de trocar.
Pelo contrário o fim de qualquer coisa deixa-me sempre um amargo de boca – os muros que desabam, as casas que se abatem depois de um século consagrado à poeira e à humidade, os livros que se desfazem nas bibliotecas, os velhos que encerram (ai de mim) a sua vida, tudo isso são momentos especiais na minha vida. Há mudanças inevitáveis, evidentemente, mas a mudança não é, necessariamente, um bem. O velho Doutor Homem, meu pai, que era um conservador singular e atípico, nunca deixou de ser leitor de Burke, o autor que o tempo consagrou como “o inimigo da revolução francesa”. Trata-se de uma inverdade: o que Burke deixou escrito foi um aviso sobre os perigos das mudanças radicais e do desejo de salvar o mundo. São coisas que andam a par: mudar o mundo e salvá-lo estão na base de quase todas as crueldades e erros da alma humana, com consequências nefastas para o curso da História. Aliás, a maioria dos grandes heróis das revoluções contemporâneas padecia de desequilíbrios que lhes deviam transformar a vida num inferno – não só achavam o mundo um lugar desadequado como, além disso, concebiam os seus semelhantes como barro a ser moldado pelas esquadrias da perfeição. Como se sabe, essa foi a via mais comum para os desastres que se conhecem.
Frequentemente os portugueses acham que o mundo, ou o país, ou o seu bairro deviam ser “de determinada maneira”, ou mais limpo, ou mais educado, ou mais colorido, ou mais arejado. E, para que os sonhos se realizem, tratam de elaborar leis e de anunciar princípios. O que acontece, com essa mesma frequência, é que a desilusão é cada vez maior porque as leis quase nunca resultam em realização da felicidade na Terra. Confesso que ajudam; mas são um instrumento de que não se deve abusar, precisamente porque as grandes mudanças acontecem com a naturalidade das estações do ano. Exagero talvez; as estações do ano não têm a ver com o assunto. Mas que seja com a naturalidade dos acontecimentos que passam despercebidos.
Criado no respeito pelo passado e por muitos dos seus símbolos, seria natural que eu crescesse conservador. Foi natural, e assim aconteceu. Houve coisas que aceitei do passado como me tinham sido legadas; houve outras que, silenciosa e discretamente, recusei – mas acabei por viver como sempre pretendi, sem incorrer nos quase divinos castigos da Tia Benedita que, aliás, morreu em paz para conforto de todos nós. Mas o que o meu século me ensinou – mostrando-o como uma evidência – foi, sobretudo, que o sofrimento dos homens não acaba e que a maldade não é um defeito da espécie mas, antes, uma das suas características. Ao contrário do filósofo, que pensava que os homens nasciam bons, a minha leviandade e observação levaram-me a pensar exactamente o contrário: o caminho para a inocência é difícil e árduo, e implica muitos sacrifícios e abnegação.
Tanto o comunismo como o fascismo, que foram abominados pela família, previam que nascesse, em algum lugar, um homem novo. Ilusão. O homem é um acontecimento repetitivo e uma velha circunstância da Criação. Nada a fazer a esse respeito, por mais que se inventasse.
Ora, os portugueses, pelo que leio nos jornais e, às vezes, me acontece ver pela televisão, apreciam as mudanças mesmo que elas não sejam necessárias. Os jornais mudam frequentemente, as caras dos telejornais confundem-nos, a gramática do português (essa língua velha de séculos) muda conforme os desejos dos gramáticos, o trânsito de Moledo e de Viana também sofreu alterações nos últimos anos; seriam todas as mudanças necessárias? Não tenho uma ideia completa sobre o assunto, mas tenho dúvidas.
in Revista Notícias Sábado – 3 Março 2007
Este desejo de mudança perpétua é bem capaz de ser sinal de uma fadiga do espírito; à falta de melhor, muda-se, altera-se a decoração da sala ou mudam-se os quadros de família, o que constitui um perigo porque as famílias, em geral, constituem uma herança impossível de trocar.
Pelo contrário o fim de qualquer coisa deixa-me sempre um amargo de boca – os muros que desabam, as casas que se abatem depois de um século consagrado à poeira e à humidade, os livros que se desfazem nas bibliotecas, os velhos que encerram (ai de mim) a sua vida, tudo isso são momentos especiais na minha vida. Há mudanças inevitáveis, evidentemente, mas a mudança não é, necessariamente, um bem. O velho Doutor Homem, meu pai, que era um conservador singular e atípico, nunca deixou de ser leitor de Burke, o autor que o tempo consagrou como “o inimigo da revolução francesa”. Trata-se de uma inverdade: o que Burke deixou escrito foi um aviso sobre os perigos das mudanças radicais e do desejo de salvar o mundo. São coisas que andam a par: mudar o mundo e salvá-lo estão na base de quase todas as crueldades e erros da alma humana, com consequências nefastas para o curso da História. Aliás, a maioria dos grandes heróis das revoluções contemporâneas padecia de desequilíbrios que lhes deviam transformar a vida num inferno – não só achavam o mundo um lugar desadequado como, além disso, concebiam os seus semelhantes como barro a ser moldado pelas esquadrias da perfeição. Como se sabe, essa foi a via mais comum para os desastres que se conhecem.
Frequentemente os portugueses acham que o mundo, ou o país, ou o seu bairro deviam ser “de determinada maneira”, ou mais limpo, ou mais educado, ou mais colorido, ou mais arejado. E, para que os sonhos se realizem, tratam de elaborar leis e de anunciar princípios. O que acontece, com essa mesma frequência, é que a desilusão é cada vez maior porque as leis quase nunca resultam em realização da felicidade na Terra. Confesso que ajudam; mas são um instrumento de que não se deve abusar, precisamente porque as grandes mudanças acontecem com a naturalidade das estações do ano. Exagero talvez; as estações do ano não têm a ver com o assunto. Mas que seja com a naturalidade dos acontecimentos que passam despercebidos.
Criado no respeito pelo passado e por muitos dos seus símbolos, seria natural que eu crescesse conservador. Foi natural, e assim aconteceu. Houve coisas que aceitei do passado como me tinham sido legadas; houve outras que, silenciosa e discretamente, recusei – mas acabei por viver como sempre pretendi, sem incorrer nos quase divinos castigos da Tia Benedita que, aliás, morreu em paz para conforto de todos nós. Mas o que o meu século me ensinou – mostrando-o como uma evidência – foi, sobretudo, que o sofrimento dos homens não acaba e que a maldade não é um defeito da espécie mas, antes, uma das suas características. Ao contrário do filósofo, que pensava que os homens nasciam bons, a minha leviandade e observação levaram-me a pensar exactamente o contrário: o caminho para a inocência é difícil e árduo, e implica muitos sacrifícios e abnegação.
Tanto o comunismo como o fascismo, que foram abominados pela família, previam que nascesse, em algum lugar, um homem novo. Ilusão. O homem é um acontecimento repetitivo e uma velha circunstância da Criação. Nada a fazer a esse respeito, por mais que se inventasse.
Ora, os portugueses, pelo que leio nos jornais e, às vezes, me acontece ver pela televisão, apreciam as mudanças mesmo que elas não sejam necessárias. Os jornais mudam frequentemente, as caras dos telejornais confundem-nos, a gramática do português (essa língua velha de séculos) muda conforme os desejos dos gramáticos, o trânsito de Moledo e de Viana também sofreu alterações nos últimos anos; seriam todas as mudanças necessárias? Não tenho uma ideia completa sobre o assunto, mas tenho dúvidas.
in Revista Notícias Sábado – 3 Março 2007
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