sábado, março 10, 2007

As bibliotecas

O mundo – isto tudo – mudou muito nos últimos anos e, por vezes, eu sinto-me um plácido reservatório de antiguidades, ou mesmo de velharias. Há, como se sabe, uma diferença entre as duas coisas. Eu fico entre ambas, creio que pairando, aproveitando a vaidade que a velhice não torna escandalosa mas que o bom senso não recomenda – por não ser boa para a saúde.

Por exemplo, Dona Elaine, a governanta de Moledo, acha que os livros velhos constituem contribuições decisivas para doenças conhecidas (a asma, a sinusite, a rinite e a diminuição da vista) e desconhecidas (como a ignorância, por exemplo, que ainda não adquiriu o estatuto de doença, julgo que por distracção). Alguns livros das minhas estantes foram conservados na biblioteca de família desde a minha juventude. Pensando que determinados livros foram comprados nos anos quarenta e que não são colecções despiciendas nem álbuns de estampas, vejo que há uma diferença entre estes tempos de hoje e aqueles que, por falsa modéstia, chamo “os da minha juventude”. Na altura sabíamos ler, dividir orações, comentar e sermos tementes aos autores. Não a todos, confesso, como basta ver pelo razoável índex que o velho Doutor Homem, meu pai, estabeleceu para uso próprio e que eu, por comodidade e por preguiça (também são coisas diferentes) usei ao longo dos anos. Esse índex era, como todos, injusto. Os seus critérios variavam bastante, oscilando entre o puro juízo estético e a mais injusta das razões – a do “carácter” dos seus autores. O meu avô, que era uma admirador de Guerra Junqueiro, com quem privou no Douro, em Barca d’Alva, foi sempre poupado a esses pormenores – o velho Doutor Homem, meu pai, achava execrável a poesia do autor de “O Melro”, recitando-a com alterações para divertir os serões na velha casa do Porto. Era um juízo, digamos, estético. Com Garrett, que era conhecido paredes dentro como “o Leitão da Silva”, foram perpetradas várias injustiças que nos impediram de apreciar a sua poesia e nos levaram a desconfiar do “Frei Luís de Sousa” – a razão era puramente política, creio eu. Desconfio que isso não toldou definitivamente a nossa vida familiar, que decorreu sem incidentes literários, se bem que não tivéssemos aproveitado uma ou duas passagens superiores das “Viagens na Minha Terra”.

Seja como for, os livros são coisas velhas e o seu proveito é apenas pessoal, egoísta e incomunicável. Não se podem exaltar publicamente, ao almoço de domingo, as observações do Doutor Johnson a propósito da sua peregrinação pelas Hébridas, sem ultrapassar os limites do decoro. Mesmo entre pessoas de família, o assunto requer cuidados.

A minha sobrinha Maria Luísa lê romances modernos e, periodicamente, insiste em que eu os leia. Ora, a coisa mais contemporânea que cataloguei, além dos romances inofensivos e campestres de Mrs. Trollope, são os livros de Dona Agustina. Tento, por isso, lembrar a minha condição de repositório de velharias, a que acrescento o factor oftalmológico que me impede de partir à aventura por entre sintaxes que afligem um leitor do século passado. Eu não apenas pertenço ao século passado como, por defeito, sou um pessimista em relação à literatura. Na verdade, os livros fazem bem e não fazem bem. Por vezes estabeleço com eles uma relação muito semelhante à que mantenho com os medicamentos que o meu médico de Viana do Castelo assegura serem benéficos; uns para dormir, outros para as coronárias, outros para os longos dias de gripe, outros para que as digestões sejam mais tranquilas.

Infelizmente, nesta idade, o efeito de ambos (livros e medicamentos) não é o mesmo de há muitos anos. Mesmo assim, farmácias e bibliotecas são bálsamos neste vale de lágrimas. A expressão faria rir o velho Doutor Homem, meu pai, que era avesso a romantismos e queixas desnecessárias. Tal como assegura Dona Elaine, o mundo não há-de parar por mais que chova em Santa Tecla. Ela tem todos os vícios de uma criadora de provérbios.

in Revista Notícias Sábado – 10 Março 2007