A adolescência de um velho
À medida que o tempo passa, há quem pense que deixo pouco de mim nestas crónicas. Ainda bem. A vaidade natural dos Homem já é um peso considerável, difícil de domar. No essencial, como os meus irmãos gostam de dizer – lembrando-me que sou “demasiado incompleto” – faltou-me uma “adolescência normal”.
No meu tempo de adolescente deveria, portanto, ter-me contentado em permanecer naquele estádio puramente animal, praticando râguebi e vigiando as belas de então, que alegravam o limbo de qualquer jovem candidato a um casamento mediano. Não casei. Não envelheci no meio de ruído nem de alegrias familiares. Não constituí, como diz a Pátria inteira, uma família. Recordo às minhas irmãs, que lamentam a minha condição de celibatário, que tenho uma família. Episodicamente, ela reúne-se no Verão em Ponte de Lima. Semanalmente, parte dela vem debicar ou gabar o talento culinário de Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, oportunidade que aproveitamos para praticar uma das mais luminosas tradições dos Homem, a má-língua entre nós. A família não me falta nem me incomoda – pelo contrário, colho dela os risos de Verão, os entusiasmos, as notícias, certos dramas, a passagem do tempo.
A minha sobrinha Maria Luísa leva-me – todos os anos – na minha peregrinação a Seide, visitando o casarão obsoleto onde Camilo desesperou ao lado de Ana Plácido. Muitas vezes, é por ela que me apercebo de como o mundo mudou (nem sempre no melhor sentido, mas trata-se de um pormenor), de como os apocalípticos não têm razão. Os outros sobrinhos invadem Moledo durante o Verão, apresentam-me namoradas que cumprimento em nome dos antepassados, alimento-os na sala de jantar e na biblioteca, abro-lhes as portas do meu Minho particular, dependurado sobre o mar. Mais do que isso – para uma família – seria exagero.
Sim, eu vivi uma adolescência. Recordo-a apenas vagamente, não porque não a tivesse mas porque não há grande coisa a glorificar de uma idade em que havia borbulhas no rosto, exames de Francês e de Matemática no liceu, e uma vaidade superlativa nos bailes da época. Quando as minhas irmãs – sobretudo – me falam de uma adolescência inexistente, limito-me a estas recordações. Na altura, somos imperfeitos. A maior parte do que se diz e se faz é, então, improcedente para qualquer pessoa normal.
O mundo de hoje valoriza a adolescência exactamente pelos mesmos motivos que me levam a colocá-la no seu lugar, apenas no seu lugar, arrumada entre os livros de Walter Scott e os álbuns das primeiras viagens a Espanha. Não vejo que felicidade possa existir da visão de um pobre ser de quinze ou dezasseis anos, condenado a mudanças genéticas e fisiológicas ou a erros fatais de gosto e de penteado. Não, não é bela a adolescência. Não é coisa que – na maior parte dos casos – valha a pena recordar. Há setenta anos, muito menos.
Começava-se a viver mais tarde. O velho Doutor Homem, meu pai, devia concordar com este ponto de vista: só aos dezassete anos, depois de vestido o primeiro terno mandado fazer no alfaiate dos Clérigos, nos era guardado um lugar à mesa em dia de cerimónia. Confiavam-nos o primeiro cálice de Porto, à sobremesa. Um ou dois anos depois, podíamos vaguear entre as lombadas da biblioteca e escolher um livro – que havia de ser manuseado criticamente antes de o podermos levar para o quarto. Quando fumássemos o primeiro charuto, seria já naquela paz familiar, serena e obtusa, tranquila, diante dos retratos dos avós. Para que queria eu recordar o que vinha antes de ser admitido a esse convívio de cálices, conversas e maledicências?
Sim, havia uma certa nostalgia. Mas, felizmente, fomos habituados a conviver com pessoas pouco românticas, que não valorizavam dramas nem tragédias ou derrotas. Isso impediu-nos de cair na tentação da tristeza ou no abismo das desilusões que a idade adulta se encarregaria de cavar para nossa infelicidade.
Sentado na varanda, recordo a minha primeira – e única – bicicleta. Uma velharia que transitou para os meus irmãos. Foi com ela, pedalando (ao invés dos meus contemporâneos adolescentes, recolhidos em casa com receio das gripes ou recompondo-se de uma bronquite), que aprendi a reconhecer os diferentes aromas do fim de tarde da Foz. É essa a minha imagem da adolescência: uma bicicleta diante do mar, passando, passando veloz.
in Revista Notícias Sábado – 31 Março 2007
No meu tempo de adolescente deveria, portanto, ter-me contentado em permanecer naquele estádio puramente animal, praticando râguebi e vigiando as belas de então, que alegravam o limbo de qualquer jovem candidato a um casamento mediano. Não casei. Não envelheci no meio de ruído nem de alegrias familiares. Não constituí, como diz a Pátria inteira, uma família. Recordo às minhas irmãs, que lamentam a minha condição de celibatário, que tenho uma família. Episodicamente, ela reúne-se no Verão em Ponte de Lima. Semanalmente, parte dela vem debicar ou gabar o talento culinário de Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, oportunidade que aproveitamos para praticar uma das mais luminosas tradições dos Homem, a má-língua entre nós. A família não me falta nem me incomoda – pelo contrário, colho dela os risos de Verão, os entusiasmos, as notícias, certos dramas, a passagem do tempo.
A minha sobrinha Maria Luísa leva-me – todos os anos – na minha peregrinação a Seide, visitando o casarão obsoleto onde Camilo desesperou ao lado de Ana Plácido. Muitas vezes, é por ela que me apercebo de como o mundo mudou (nem sempre no melhor sentido, mas trata-se de um pormenor), de como os apocalípticos não têm razão. Os outros sobrinhos invadem Moledo durante o Verão, apresentam-me namoradas que cumprimento em nome dos antepassados, alimento-os na sala de jantar e na biblioteca, abro-lhes as portas do meu Minho particular, dependurado sobre o mar. Mais do que isso – para uma família – seria exagero.
Sim, eu vivi uma adolescência. Recordo-a apenas vagamente, não porque não a tivesse mas porque não há grande coisa a glorificar de uma idade em que havia borbulhas no rosto, exames de Francês e de Matemática no liceu, e uma vaidade superlativa nos bailes da época. Quando as minhas irmãs – sobretudo – me falam de uma adolescência inexistente, limito-me a estas recordações. Na altura, somos imperfeitos. A maior parte do que se diz e se faz é, então, improcedente para qualquer pessoa normal.
O mundo de hoje valoriza a adolescência exactamente pelos mesmos motivos que me levam a colocá-la no seu lugar, apenas no seu lugar, arrumada entre os livros de Walter Scott e os álbuns das primeiras viagens a Espanha. Não vejo que felicidade possa existir da visão de um pobre ser de quinze ou dezasseis anos, condenado a mudanças genéticas e fisiológicas ou a erros fatais de gosto e de penteado. Não, não é bela a adolescência. Não é coisa que – na maior parte dos casos – valha a pena recordar. Há setenta anos, muito menos.
Começava-se a viver mais tarde. O velho Doutor Homem, meu pai, devia concordar com este ponto de vista: só aos dezassete anos, depois de vestido o primeiro terno mandado fazer no alfaiate dos Clérigos, nos era guardado um lugar à mesa em dia de cerimónia. Confiavam-nos o primeiro cálice de Porto, à sobremesa. Um ou dois anos depois, podíamos vaguear entre as lombadas da biblioteca e escolher um livro – que havia de ser manuseado criticamente antes de o podermos levar para o quarto. Quando fumássemos o primeiro charuto, seria já naquela paz familiar, serena e obtusa, tranquila, diante dos retratos dos avós. Para que queria eu recordar o que vinha antes de ser admitido a esse convívio de cálices, conversas e maledicências?
Sim, havia uma certa nostalgia. Mas, felizmente, fomos habituados a conviver com pessoas pouco românticas, que não valorizavam dramas nem tragédias ou derrotas. Isso impediu-nos de cair na tentação da tristeza ou no abismo das desilusões que a idade adulta se encarregaria de cavar para nossa infelicidade.
Sentado na varanda, recordo a minha primeira – e única – bicicleta. Uma velharia que transitou para os meus irmãos. Foi com ela, pedalando (ao invés dos meus contemporâneos adolescentes, recolhidos em casa com receio das gripes ou recompondo-se de uma bronquite), que aprendi a reconhecer os diferentes aromas do fim de tarde da Foz. É essa a minha imagem da adolescência: uma bicicleta diante do mar, passando, passando veloz.
in Revista Notícias Sábado – 31 Março 2007
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