Elogio do passado
O poeta dizia que Abril era o mês mais cruel. Raramente se devem atribuir aos poetas outras virtudes para lá das que vêm – à vista – na sua poesia, o que nos teria poupado grandes contrariedades e desmentidos. Seja, pois, Abril o mais cruel dos meses, uma vez que não se trata de assunto meteorológico. Compreende-se o receio de T.S. Eliot, que não deve confundir-se com hostilidade. Em nós, os velhos, a Primavera significa uma explosão brutal e escandalosa. Por um lado, desaparecem os horrores de Inverno – e o leitor já sabe do meu desaguisado com a estação da neve e do frio; por outro, a Primavera, digamos, acontece em todo o lado excepto em nós. A minha qualidade de botânico amador lembra-me a explosão de amarelos chocantes pelas estradas do Minho, albergando mimosas, e pelos parques das redondezas, exibindo japoneiras coloridas, ou begónias que ainda têm um jardineiro para cuidá-las.
Na varanda das traseiras, por esta ocasião, despontam as azáleas de rosado profundo e escuro cujos pés trouxe de uma excursão galega há três anos; a minha sobrinha Maria Luísa garante que foi há quatro e essa indecisão faz parte das mais renhidas discussões de família, tirando a que – todos os Verões – leva a que em Ponte de Lima se estabeleça a indecisão sobre o local exacto onde desembarcou a tropa liberal, se no Mindelo (a antiga Praia dos Ladrões) ou na Areosa de Pampelido. Não que o assunto nos mobilize; mas um pouco de rigor histórico nas derrotas de família não faz mal nenhum. Maria Luísa acha que o tema só se justifica quando as pessoas não têm mais nada em que pensar, tendo em conta que a convenção de Évora Monte já foi há muito tempo, que o Remexido nunca mais voltará a derrotar Sá da Bandeira, e que a Tia Benedita – a matriarca da família – já nos não vigia a fidelidade ao Senhor D. Miguel.
Recentemente, num dos almoços de domingo, tive a estultice de achar que José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido, seria um bom tema de romance. Quase toda a família pensa – publicamente – que eu “não tenho dedo para a literatura”, se tirarmos o apego a velharias, à literatura gótica e à poesia inglesa do meu século, às novelas do exilado de Seide e do génio de “Tristram Shandy”, às monografias regionais e à chamada literatura panfletária, que vai de Samuel Johnson a Acúrcio das Neves passando por Burke ou Disraeli. É talvez verdade que dessas leituras só pode resultar um espírito perturbado ou um leitor indisciplinado. Na melhor das hipóteses, apesar de tudo, fabrica-se um carácter manchado pela vaidade, que é aquilo que os livros transmitem com abundância.
Seja como for, o desprezo a que a História votou o Remexido é uma injustiça. Ele é um dos guerreiros da nossa galeria de bandoleiros e lutadores condenados à derrota, depois de ter vencido as suas próprias batalhas contra Sá da Bandeira e Severim de Noronha (duque da Terceira). Fuzilado às escondidas, em Faro, depois de ter sido perdoado pela própria Rainha, José Joaquim de Sousa Reis sucumbiu ao desenho que dele fizeram os vencedores, como ordenam as regras e os princípios. A Tia Benedita, que uma vez por outra regressava ao seu longínquo século para nos surpreender, tinha por ele uma admiração muda desde que soube que o guerrilheiro mandou uns homens a Alvalade, a coberto da noite, recolher uma espada que o Senhor D. Miguel deixara na casa dos seus anfitriões depois de iniciada a viagem para o exílio, que ainda o levaria a Sines no dia seguinte. A matriarca dos Homem, que enviuvara aos quarenta, não sabia de literatura aquilo que um bacharel de hoje adivinha; mas tanto a sua dureza como a repulsa pela democracia (e pela República, que sintetizava todos os defeitos do seu tempo) fizeram dela uma testemunha silenciosa do passado, que venerava sem arrebatamentos e sem ilusões.
Nesta antecâmara da Primavera rendo-lhe homenagem, junto dos botões de azálea na varanda das traseiras. Ela não tinha a sensibilidade das mulheres românticas nem a doçura das avós provincianas. O velho Doutor Homem, meu pai, respeitava-lhe o nome e a memória, e raramente a desculpava pelos seus excessos. Quando a recordo é como se o passado regressasse, nem perfeito nem imperfeito. Apenas como uma penumbra que cobre o início da Primavera.
in Revista Notícias Sábado – 17 Março 2007
Na varanda das traseiras, por esta ocasião, despontam as azáleas de rosado profundo e escuro cujos pés trouxe de uma excursão galega há três anos; a minha sobrinha Maria Luísa garante que foi há quatro e essa indecisão faz parte das mais renhidas discussões de família, tirando a que – todos os Verões – leva a que em Ponte de Lima se estabeleça a indecisão sobre o local exacto onde desembarcou a tropa liberal, se no Mindelo (a antiga Praia dos Ladrões) ou na Areosa de Pampelido. Não que o assunto nos mobilize; mas um pouco de rigor histórico nas derrotas de família não faz mal nenhum. Maria Luísa acha que o tema só se justifica quando as pessoas não têm mais nada em que pensar, tendo em conta que a convenção de Évora Monte já foi há muito tempo, que o Remexido nunca mais voltará a derrotar Sá da Bandeira, e que a Tia Benedita – a matriarca da família – já nos não vigia a fidelidade ao Senhor D. Miguel.
Recentemente, num dos almoços de domingo, tive a estultice de achar que José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido, seria um bom tema de romance. Quase toda a família pensa – publicamente – que eu “não tenho dedo para a literatura”, se tirarmos o apego a velharias, à literatura gótica e à poesia inglesa do meu século, às novelas do exilado de Seide e do génio de “Tristram Shandy”, às monografias regionais e à chamada literatura panfletária, que vai de Samuel Johnson a Acúrcio das Neves passando por Burke ou Disraeli. É talvez verdade que dessas leituras só pode resultar um espírito perturbado ou um leitor indisciplinado. Na melhor das hipóteses, apesar de tudo, fabrica-se um carácter manchado pela vaidade, que é aquilo que os livros transmitem com abundância.
Seja como for, o desprezo a que a História votou o Remexido é uma injustiça. Ele é um dos guerreiros da nossa galeria de bandoleiros e lutadores condenados à derrota, depois de ter vencido as suas próprias batalhas contra Sá da Bandeira e Severim de Noronha (duque da Terceira). Fuzilado às escondidas, em Faro, depois de ter sido perdoado pela própria Rainha, José Joaquim de Sousa Reis sucumbiu ao desenho que dele fizeram os vencedores, como ordenam as regras e os princípios. A Tia Benedita, que uma vez por outra regressava ao seu longínquo século para nos surpreender, tinha por ele uma admiração muda desde que soube que o guerrilheiro mandou uns homens a Alvalade, a coberto da noite, recolher uma espada que o Senhor D. Miguel deixara na casa dos seus anfitriões depois de iniciada a viagem para o exílio, que ainda o levaria a Sines no dia seguinte. A matriarca dos Homem, que enviuvara aos quarenta, não sabia de literatura aquilo que um bacharel de hoje adivinha; mas tanto a sua dureza como a repulsa pela democracia (e pela República, que sintetizava todos os defeitos do seu tempo) fizeram dela uma testemunha silenciosa do passado, que venerava sem arrebatamentos e sem ilusões.
Nesta antecâmara da Primavera rendo-lhe homenagem, junto dos botões de azálea na varanda das traseiras. Ela não tinha a sensibilidade das mulheres românticas nem a doçura das avós provincianas. O velho Doutor Homem, meu pai, respeitava-lhe o nome e a memória, e raramente a desculpava pelos seus excessos. Quando a recordo é como se o passado regressasse, nem perfeito nem imperfeito. Apenas como uma penumbra que cobre o início da Primavera.
in Revista Notícias Sábado – 17 Março 2007
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