O mundo que não é mundo
Olho para as gerações reunidas à mesa de domingo. Os rostos são-me muito familiares e acompanham-me há muitos anos. As minhas irmãs acham, como julgam que acontece em quase tudo relacionado com Moledo, que o jardim está desorganizado e "precisa de arranjo" — elas acreditam que devia existir uma geometria especial a dirigir o crescimento dos teixos, dos chorões, dos pinheiros e da magnólia, que sobreviveu à fúria do enxerto outonal. De resto, no jardim cresce um pouco de tudo. A luta de um botânico amador pelo seu território é um suplemento de peripécias no resumo da minha vida.
Das portas da sala de jantar, onde decorrem as reuniões dominicais, há um quadro vagamente campestre que se sobrepõe à monotonia do mobiliário do interior da casa, herança de uma família que foi tão conservadora que até os móveis arrastou de geração em geração, preservando, inclusive, a poeira que lhes ficou agarrada.
Os Homem mudaram pouco de casa. O casarão de Ponte de Lima, na sua simplicidade de granito, e sem outro sinal de exuberância para além da pedra escura manchada de heras e videiras, mantém-se como o emblema da família. Por ali passaram os meus bisavôs, os verões da adolescência e da juventude, a memória da tia Benedita - e a música do velho doutor Homem, meu pai, que pensou em modernizar o vetusto Minho através de um gira-discos comprado numa das suas viagens ao estrangeiro. Periodicamente, a família reúne-se no seu relvado estival, delimitado por freixos muito verdes e despenteados, numa espécie de concerto campestre sem orquestra, venerando a memória dos antepassados. A tradição desses ajuntamentos familiares foi também mantida de geração para geração; o velho doutor Homem, meu pai, atribuía-Ihe, sobretudo, a virtude de impedir que nos esquecêssemos dos rostos dos mais chegados, coisa que acontecia frequentemente, tendo em conta a multiplicação de crianças na família e o famoso "carácter distraído" dos Homem. Nessas ocasiões, dona Ester, minha mãe, tentava evitar que ele, às escondidas, oferecesse moedas de dez tostões aos netos e sobrinhos-netos que arrancassem um número razoável de gladíolos. Esta travessura explica-se: os gladíolos eram, para o seu sentido estético, uma planta que não devia ser admitida na categoria das espécies botânicas e que ameaçava poluir o que, em tempos, seriam os canteiros vagamente aristocratas do casarão de Ponte de Lima.
A ilusão da velha aristocracia, felizmente, nunca manchou a memória dos Homem, habituados desde cedo a venerar o trabalho e "a profissão", a levantar-se cedo, a ter contabilista - e a rir-se moderadamente do "antigo regime". Isso é uma coisa; outra, diferente, é conseguir alguém livrar-se das recordações que lhe estão coladas à pele. Os Homem nunca o conseguiram, seja por provincianismo ou por misantropia, como se tivéssemos herdado o sobrolho da tia Benedita (vigiando faltas de respeito à tradição miguelista) e, em simultâneo, a erudição do tio Alberto, que mais tarde haveria de se tornar o primeiro membro da família a enamorar-se de uma princesa vinda das margens do Cáspio.
Na tradição oral da família, que nos anos trinta vivia amedrontada pelo bolchevismo, comenta-se que ela não era princesa de verdade. O tio Alberto não ligou. Ele não queria saber. Agarrado aos seus livros - era um académico de número —, poliglota, botânico, moderadamente considerado jurisconsulto, nem a prudência que herdou da família o impediu de perecer diante do exotismo da paixão. Conserva-se dele, além dos livros (onde, a par de monografias pesadíssimas, há uma colecção completa do The Sportsman' e das obras de Charles Caleb Colton), um retraio envelhecido desses anos. Morreu na casa de S. Pedro de Arcos, no Inverno de 1968, dois anos depois de a sua princesa russa (na verdade, era persa) ter sido sepultada perto de Genebra. O velho doutor Homem, meu pai, perdeu mais do que um irmão; o tio Alberto era um dos últimos aventureiros da família.
Ao ver o jardim desalinhado de Moledo ou ao reparar nas gerações reunidas à mesa de domingo, penso que o mundo não é mundo se lhe retirarmos a memória daqueles que o desafiaram e pereceram nesse combate. Perde-se sempre a batalha. Mas vale a pena. Até nisso somos conservadores, nós.
in Revista Notícias Sábado – 24 Março 2007
Das portas da sala de jantar, onde decorrem as reuniões dominicais, há um quadro vagamente campestre que se sobrepõe à monotonia do mobiliário do interior da casa, herança de uma família que foi tão conservadora que até os móveis arrastou de geração em geração, preservando, inclusive, a poeira que lhes ficou agarrada.
Os Homem mudaram pouco de casa. O casarão de Ponte de Lima, na sua simplicidade de granito, e sem outro sinal de exuberância para além da pedra escura manchada de heras e videiras, mantém-se como o emblema da família. Por ali passaram os meus bisavôs, os verões da adolescência e da juventude, a memória da tia Benedita - e a música do velho doutor Homem, meu pai, que pensou em modernizar o vetusto Minho através de um gira-discos comprado numa das suas viagens ao estrangeiro. Periodicamente, a família reúne-se no seu relvado estival, delimitado por freixos muito verdes e despenteados, numa espécie de concerto campestre sem orquestra, venerando a memória dos antepassados. A tradição desses ajuntamentos familiares foi também mantida de geração para geração; o velho doutor Homem, meu pai, atribuía-Ihe, sobretudo, a virtude de impedir que nos esquecêssemos dos rostos dos mais chegados, coisa que acontecia frequentemente, tendo em conta a multiplicação de crianças na família e o famoso "carácter distraído" dos Homem. Nessas ocasiões, dona Ester, minha mãe, tentava evitar que ele, às escondidas, oferecesse moedas de dez tostões aos netos e sobrinhos-netos que arrancassem um número razoável de gladíolos. Esta travessura explica-se: os gladíolos eram, para o seu sentido estético, uma planta que não devia ser admitida na categoria das espécies botânicas e que ameaçava poluir o que, em tempos, seriam os canteiros vagamente aristocratas do casarão de Ponte de Lima.
A ilusão da velha aristocracia, felizmente, nunca manchou a memória dos Homem, habituados desde cedo a venerar o trabalho e "a profissão", a levantar-se cedo, a ter contabilista - e a rir-se moderadamente do "antigo regime". Isso é uma coisa; outra, diferente, é conseguir alguém livrar-se das recordações que lhe estão coladas à pele. Os Homem nunca o conseguiram, seja por provincianismo ou por misantropia, como se tivéssemos herdado o sobrolho da tia Benedita (vigiando faltas de respeito à tradição miguelista) e, em simultâneo, a erudição do tio Alberto, que mais tarde haveria de se tornar o primeiro membro da família a enamorar-se de uma princesa vinda das margens do Cáspio.
Na tradição oral da família, que nos anos trinta vivia amedrontada pelo bolchevismo, comenta-se que ela não era princesa de verdade. O tio Alberto não ligou. Ele não queria saber. Agarrado aos seus livros - era um académico de número —, poliglota, botânico, moderadamente considerado jurisconsulto, nem a prudência que herdou da família o impediu de perecer diante do exotismo da paixão. Conserva-se dele, além dos livros (onde, a par de monografias pesadíssimas, há uma colecção completa do The Sportsman' e das obras de Charles Caleb Colton), um retraio envelhecido desses anos. Morreu na casa de S. Pedro de Arcos, no Inverno de 1968, dois anos depois de a sua princesa russa (na verdade, era persa) ter sido sepultada perto de Genebra. O velho doutor Homem, meu pai, perdeu mais do que um irmão; o tio Alberto era um dos últimos aventureiros da família.
Ao ver o jardim desalinhado de Moledo ou ao reparar nas gerações reunidas à mesa de domingo, penso que o mundo não é mundo se lhe retirarmos a memória daqueles que o desafiaram e pereceram nesse combate. Perde-se sempre a batalha. Mas vale a pena. Até nisso somos conservadores, nós.
in Revista Notícias Sábado – 24 Março 2007
<< Home