Do pobre futebol às graças do tempo
O meu sobrinho Pedro anda preocupado porque – diz ele – o seu clube de futebol “está com fraco rendimento”. O assunto não me comove extraordinariamente mas mantenho-me atento e finjo uma preocupação quase, quase solidária.
O velho Doutor Homem, meu pai, considerava o futebol um desporto muito digno desde que fosse disputado entre clubes ingleses, que ele julgava (na sua ingenuidade tocante) um alfobre de fidalgos do relvado, ou, em alternativa, entre equipas espanholas. Em vão, alguns de nós tentaram demonstrar que a natureza do futebol se confundiria com a das multidões, em geral, e que as excepções não faziam mais do que confirmar algumas das regras universalmente aceites por este grupo de quase misantropos reunidos sob o mesmo nome.
A preocupação do meu sobrinho pareceu-me, no entanto, honesta e, pior, sincera, conquanto fosse recebida com aquela indiferença natural entre os bárbaros que se dedicam a ser indiferentes, com a excepção, salvo erro, daquela vaga emoção de 1966 em que Portugal se classificou num lugar provavelmente superior ao normal e que agora não recordo.
Maria Luísa, sensata (uma qualidade que evito lembrar-lhe com medo de ofendê-la), recomendou-lhe que tivesse calma, que isso passaria, tal como quase todas as paixões acabam por passar.
Durante os anos da minha juventude – um período vago e pouco sentimental que foi da puberdade até ao epílogo da frequência da cadeira de Direito Corporativo – as paixões foram uma espécie de obrigação contratual, de qualquer modo muito mais simples do que a leitura dos ‘Estudos sobre a História dos Regimes Matrimoniais’, do severíssimo professor Paulo Merêa, de que recordávamos o interesse pelas coisas visigóticas, pouco populares mesmo naqueles tempos. Havia, entre mim e as jovens que ainda recordo dessa época, sobretudo a obrigação de não as pisar descuidadamente nos salões de baile e de evitarmos discutir futebol. Era tudo. O resto, eram regras de civilidade relativamente banais (por exemplo, usar gravata, ter algum sentido de humor e não mencionar o interesse nem pela Comissão de Reforma do Imposto de Capitais nem pelos trinados da guitarra do dr. António Carvalhal).
A minha sobrinha Maria Luísa, que tem uma vocação madura para historiadora, pretende que o interesse desmedido pelo futebol é uma espécie de inclinação pelas coisas que combinam com a vacuidade dos tempos. Eu não concordo e uma das razões é que nunca consegui entender verdadeiramente as razões que levam muitas pessoas a considerar o futebol uma arte, semelhante aos rabiscos da pintura moderna. Aliás, eu nem sei qual é o clube do meu sobrinho.
in Domingo - Correio da Manhã - 2 Outubro 2011
O velho Doutor Homem, meu pai, considerava o futebol um desporto muito digno desde que fosse disputado entre clubes ingleses, que ele julgava (na sua ingenuidade tocante) um alfobre de fidalgos do relvado, ou, em alternativa, entre equipas espanholas. Em vão, alguns de nós tentaram demonstrar que a natureza do futebol se confundiria com a das multidões, em geral, e que as excepções não faziam mais do que confirmar algumas das regras universalmente aceites por este grupo de quase misantropos reunidos sob o mesmo nome.
A preocupação do meu sobrinho pareceu-me, no entanto, honesta e, pior, sincera, conquanto fosse recebida com aquela indiferença natural entre os bárbaros que se dedicam a ser indiferentes, com a excepção, salvo erro, daquela vaga emoção de 1966 em que Portugal se classificou num lugar provavelmente superior ao normal e que agora não recordo.
Maria Luísa, sensata (uma qualidade que evito lembrar-lhe com medo de ofendê-la), recomendou-lhe que tivesse calma, que isso passaria, tal como quase todas as paixões acabam por passar.
Durante os anos da minha juventude – um período vago e pouco sentimental que foi da puberdade até ao epílogo da frequência da cadeira de Direito Corporativo – as paixões foram uma espécie de obrigação contratual, de qualquer modo muito mais simples do que a leitura dos ‘Estudos sobre a História dos Regimes Matrimoniais’, do severíssimo professor Paulo Merêa, de que recordávamos o interesse pelas coisas visigóticas, pouco populares mesmo naqueles tempos. Havia, entre mim e as jovens que ainda recordo dessa época, sobretudo a obrigação de não as pisar descuidadamente nos salões de baile e de evitarmos discutir futebol. Era tudo. O resto, eram regras de civilidade relativamente banais (por exemplo, usar gravata, ter algum sentido de humor e não mencionar o interesse nem pela Comissão de Reforma do Imposto de Capitais nem pelos trinados da guitarra do dr. António Carvalhal).
A minha sobrinha Maria Luísa, que tem uma vocação madura para historiadora, pretende que o interesse desmedido pelo futebol é uma espécie de inclinação pelas coisas que combinam com a vacuidade dos tempos. Eu não concordo e uma das razões é que nunca consegui entender verdadeiramente as razões que levam muitas pessoas a considerar o futebol uma arte, semelhante aos rabiscos da pintura moderna. Aliás, eu nem sei qual é o clube do meu sobrinho.
in Domingo - Correio da Manhã - 2 Outubro 2011
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