domingo, outubro 16, 2011

Acerca da música e da verdadeira melodia

Havia, na família, uma aversão mitigada por Chopin. Tirando o Tio Henrique, melómano de Arcos de Valdevez (passou parte da sua vida a congeminar uma obra sinfónica sobre os sertões africanos com um exagero de acordes melódicos de oboé), o velho Doutor Homem, meu pai – que a tudo sacrificava os seus discos de Anna Moffo (que ele jurou ter visto em França na pele da Zerlina de ‘Don Giovanni’) com a sua melancolia outonal de ‘Lucia di Lammermoor’ ou de ‘O Elixir do Amor’ – e o Tio Alberto que disfarçava o seu desinteresse por ópera com duas ou três descrições dos grandes teatros da Europa, a família achava a música, em geral, um passatempo interessante ou, pelo menos, um ruído de fundo agradável e mais aprazível do que um vago chilreio nas hortas.

Chopin passava por ser, em geral, um tanto romântico demais, um nome que se poderia citar sempre que havia necessidade de dizer qualquer coisa sobre música, mesmo que não viesse a propósito. Era uma grande injustiça. Chopin já sofrera o bastante pela sua ligação com George Sand, e não precisava desta desfeita familiar. As suas polcas e mazurcas eram abafadas pela veia melodiosa dos nocturnos e dos prelúdios, coisa que não cabia no feitio de uma família impaciente e dada a ironias. Fui criado nesse ambiente de desprezo pela música que ambientava grandes paisagens melancólicas, soturnas, crepusculares, tristes ou apenas ‘melosas’, uma palavra que Dona Ester, minha mãe, usava para comentar certas companhias femininas dos meus irmãos. Por oposição, prendi-me a Liszt, que não era romântico nem soturno – apenas profundo, grave e metafísico – e ao barroco. A ligação ao barroco só pôde completar-se depois de o Dr. Barreto Nunes, o meu bibliotecário de Braga, ter reconstruído parte do que seria o gosto pelo contraponto em poesia e na vida real. Na verdade, a geometria do barroco, instável e falsa como o ouro de Minas Gerais, interessava-me como uma espécie de contradança, com as suas evoluções redondas, o seu ondear, e os seus mitos fundadores: a fragilidade das coisas, a necessidade de mascarar a tristeza, a exigência de uma alegria cheia de contenções. Liszt era o contraponto possível.

Os meus sobrinhos, que desconhecem esta discussão, também não andam longe disto. Pedro, o arquitecto, ouve no carro uma coisa vaga e barulhenta a que dá o nome de rock. A sua namorada holandesa persegue-lhe o gosto, mas ele avisa que os melhores músicos de rock, os mais barulhentos, são os mais aptos para construírem as melhores melodias e as melhores baladas. Desconheço o assunto, mas acho-lhe uma certa lógica.

in Domingo - Correio da Manhã - 16 Outubro 2011