As recordações de um velho panamá
Conforme ensinavam os antigos, a meteorologia é uma ciência mais incerta do que o tempo que faz ao fim de semana. A minha sobrinha Maria Luísa pensa – e diz – que os Homem têm um ditado para tudo, o que não é rigorosamente verdade; há coisas que nos escapam. A meia-estação, conforme já referi ao leitor paciente e abnegado, é uma delas: trata-se daquele período que constitui, só por si, uma afronta ao guarda-roupa dos Homem de todas as gerações. O velho Doutor Homem, meu pai, considerava-se a si mesmo, nos dias em que aquela serenidade das montanhas descia até ao pátio do casarão de Ponte de Lima, um dândi. Isso devia-se ao seu gosto, não tão exagerado como às vezes pareço fazer crer, pelos velhos alfaiates do Porto, seres pacientes que, na geometria de um corte de fazenda, incluíam exigências quase infames que o velho causídico imaginava próprias de Saville Row.
A única coisa que me resta desse tempo é um velho panamá brasileiro, creme, tingido pelo tempo e preservado ao longo dos anos como uma recordação que os anos não escoaram totalmente. No último domingo, parte da família incluiu-me na sua peregrinação periódica ao Ancoradouro, um restaurante vizinho onde levamos visitas prezadas e amigos que não queremos desiludir quando Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, ou está de férias ou se sente ultrapassada pelos acontecimentos. Levei, portanto, o meu panamá – uma homenagem ao sol que devia ser de Outono e era, afinal, um prolongamento do Verão minhoto, discreto, suave e melancólico. Maria Luísa teceu várias considerações sobre o panamá (insisto que não se trata de um chapéu) e sugeriu perversidades tropicais; não houve tal. O meu panamá brasileiro é apenas uma recordação de velho – conservo-o há mais de cinquenta anos entre os bens que achei que valia a pena preservar. Depois do almoço, como sempre generoso, encaminhámo-nos para as mesas da esplanada – a fim de continuar a conversa, suculenta, sobre isto e aquilo. A Dra. Celina, a nossa bibliotecária de Caminha, que mora umas ruas acima, apareceu para o café e pediu a sua lista de recordações do panamá, acicatada por Maria Luísa. Nessa noite, íamos à ópera, ao Porto, ver ‘Sansão e Dalila’ (no meu caso, apenas o segundo acto), e por isso uma estranha loquacidade tomou conta do lugar. Falei de tudo: da loja onde o comprei, há mais de cinquenta anos, do honesto chapeleiro que mo recomendou com a garantia (na altura inútil) de longevidade, e até de um passeio até Santa Tecla. O essencial, claro, guardo para a próxima semana.
in Domingo - Correio da Manhã - 9 Outubro 2011
A única coisa que me resta desse tempo é um velho panamá brasileiro, creme, tingido pelo tempo e preservado ao longo dos anos como uma recordação que os anos não escoaram totalmente. No último domingo, parte da família incluiu-me na sua peregrinação periódica ao Ancoradouro, um restaurante vizinho onde levamos visitas prezadas e amigos que não queremos desiludir quando Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, ou está de férias ou se sente ultrapassada pelos acontecimentos. Levei, portanto, o meu panamá – uma homenagem ao sol que devia ser de Outono e era, afinal, um prolongamento do Verão minhoto, discreto, suave e melancólico. Maria Luísa teceu várias considerações sobre o panamá (insisto que não se trata de um chapéu) e sugeriu perversidades tropicais; não houve tal. O meu panamá brasileiro é apenas uma recordação de velho – conservo-o há mais de cinquenta anos entre os bens que achei que valia a pena preservar. Depois do almoço, como sempre generoso, encaminhámo-nos para as mesas da esplanada – a fim de continuar a conversa, suculenta, sobre isto e aquilo. A Dra. Celina, a nossa bibliotecária de Caminha, que mora umas ruas acima, apareceu para o café e pediu a sua lista de recordações do panamá, acicatada por Maria Luísa. Nessa noite, íamos à ópera, ao Porto, ver ‘Sansão e Dalila’ (no meu caso, apenas o segundo acto), e por isso uma estranha loquacidade tomou conta do lugar. Falei de tudo: da loja onde o comprei, há mais de cinquenta anos, do honesto chapeleiro que mo recomendou com a garantia (na altura inútil) de longevidade, e até de um passeio até Santa Tecla. O essencial, claro, guardo para a próxima semana.
in Domingo - Correio da Manhã - 9 Outubro 2011
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