domingo, outubro 23, 2011

As doenças, um luxo da meia idade

A vida tem coisas simpáticas e uma delas não foi a descoberta de que, aos quarenta anos, eu era diabético. Nessa altura, os motoristas de táxi usavam farda com boné e, a maioria deles, gravata – foi um deles que me trouxe do consultório médico onde a família, periodicamente, se queixava amargamente dos males do corpo. O consultório era na Baixa do Porto e o táxi era igualmente familiar; o sr. Gomes passava por ser uma instituição que prestava o serviço de táxi para toda a casa, e por marcação inapelável em qualquer estação do ano. No Natal, o velho Doutor Homem, meu pai, gratificava simbolicamente essa dedicação que valia a qualquer membro da família ou funcionário do escritório ser transportado no velho Plymouth (geralmente até S. Bento para tomar o comboio, ou para o serviço regular entre casa e o escritório, que o velho causídico apreciava como um luxo de lorde, enquanto lia o jornal): o sr. Gomes fazia parte da história desta família portuense e não lhe faltava o Vinho do Porto no fim de ano.

A partir dos quarenta anos, o desfile de doenças e restantes males da idade era uma coisa vulgar e a que se não dava grande importância. A eternidade nunca preocupou os Homem, que encontraram o mundo já organizado e com um lugar reservado entre a velha burguesia da cidade. Esse privilégio teve o seu preço: uma vida moderadamente anónima, a indiferença diante dos atropelos da política (parte da família continuava a chamar Rua do Repouso à vintista Rua do Heroísmo, por muito respeito que lhes merecesse o senhor Conde de Campo Bello), leituras amenas e pouco populares, o gosto pela província mais do que pelo pobre cosmopolitismo da época e um certo desmazelo na forma como aceitava o destino, permitindo-se, aqui e ali, viver em grande. Crê-se que esse “estilo” (era também assim que a Tia Benedita, protegida pelos granitos e arvoredos de Ponte de Lima, designava os escândalos da família) nos permitiu sobreviver em paz, venerando os retratos dos antepassados e sendo ignorados pelos contemporâneos.

De entre as manias dos Homem nunca constou a hipocondria. As doenças faziam parte desse “estilo”. À excepção da Tia Benedita e de Dona Ester, minha mãe (para quem a farmácia mais adequada se compunha de iodo, areia das praias do Minho, água fria e bronzeado pelo Verão fora), tínhamos um certo afecto pelas doenças triviais: problemas nos rins, um pouco de hipertensão, gota ou fígado. Era o luxo da meia idade. Mas não atrapalhavam – longe disso – o destino a cumprir nem a finalidade de uma vida inteira. Até hoje.

in Domingo - Correio da Manhã - 23 Outubro 2011