Memórias de Moledo com a chegada do Sol
O mundo era provavelmente mais triste nesses anos em que o meu avô percorria as colinas do Douro, descendo aqui e ali de um comboio vagaroso que se equilibrava sobre um rio escuro e profundo. As suas paragens coincidiam com a proximidade das quintas onde o velho administrador, contabilista e procurador (tarefas que desempenhava com competência) pernoitava entre proprietários ingleses, vinhateiros do antigo regime e fidalgos que discutiam genealogia. Discutia com eles as minudências das exportações, dos créditos bancários, do preços dos terrenos e – em anos maus – dos empréstimos a haver.
Um antepassado dos Homem morrera ali numa escaramuça dos anos trinta (do século XIX), quando a guerra civil se estendera às margens do Côa, do Távora e do Douro. O meu avô era discreto; se tivesse vivido nesse tempo teria sido um cartista durante a Regeneração, esquecendo a má redacção com que a Carta viera do Brasil. Aprendera, pelos seus próprios meios, que o trabalho não é um valor em si mesmo e que se limita a proporcionar o mais inestimável dos bens: o tempo.
Eu via-o regressar das colinas do Douro, carregado de cabazes e livros de assentos, com a sensação de que recuperara uma parte do seu tempo. O seu ajudante nestas viagens dos anos trinta e quarenta foi um fidelíssimo escriturário portuense que o acompanhou até à morte nos mistérios da contabilidade e da administração – e que lhe herdou o escritório e a clientela, que manteve durante muitos anos. Era um homem bom e sem história, em quem os negociantes e produtores de vinho depositavam confiança e dinheiro. Ele, sim, com a sua modéstia de burguês do Porto, ensimesmado e discreto, seria a figura de um romance. Teve as suas primeiras férias quando o velho Doutor Homem, meu pai, comprou este pinhal onde hoje se ergue o eremitério de Moledo, construído por mim no final dos anos setenta. Veio, com a família, dizer-nos que era inútil metermo-nos em agricultura; bastou-lhe olhar os terrenos, que alcançavam as colinas que depois seria desbravadas por estradas que levariam às praias de hoje.
“Então, não se faz vinha?”, perguntou-lhe o velho Doutor Homem, meu pai, cujos contactos com a agricultura se resumiam a ter ouvido falar de hortas de onde se colhia salsa e onde cresciam ervilhas.
“Não se faz vinha.” Foi mais do que uma opinião. Daí em diante, improdutivos, ficámos quase românticos, olhando o nevoeiro entre as agulhas dos pinhais. Hoje, para lá dos muros da casa, observo as dunas e a chegada dos primeiros voluntários que se depositam sobre a areia, venerando o sol do Moledo.
in Domingo - Correio da Manhã - 11 Abril 2010
Um antepassado dos Homem morrera ali numa escaramuça dos anos trinta (do século XIX), quando a guerra civil se estendera às margens do Côa, do Távora e do Douro. O meu avô era discreto; se tivesse vivido nesse tempo teria sido um cartista durante a Regeneração, esquecendo a má redacção com que a Carta viera do Brasil. Aprendera, pelos seus próprios meios, que o trabalho não é um valor em si mesmo e que se limita a proporcionar o mais inestimável dos bens: o tempo.
Eu via-o regressar das colinas do Douro, carregado de cabazes e livros de assentos, com a sensação de que recuperara uma parte do seu tempo. O seu ajudante nestas viagens dos anos trinta e quarenta foi um fidelíssimo escriturário portuense que o acompanhou até à morte nos mistérios da contabilidade e da administração – e que lhe herdou o escritório e a clientela, que manteve durante muitos anos. Era um homem bom e sem história, em quem os negociantes e produtores de vinho depositavam confiança e dinheiro. Ele, sim, com a sua modéstia de burguês do Porto, ensimesmado e discreto, seria a figura de um romance. Teve as suas primeiras férias quando o velho Doutor Homem, meu pai, comprou este pinhal onde hoje se ergue o eremitério de Moledo, construído por mim no final dos anos setenta. Veio, com a família, dizer-nos que era inútil metermo-nos em agricultura; bastou-lhe olhar os terrenos, que alcançavam as colinas que depois seria desbravadas por estradas que levariam às praias de hoje.
“Então, não se faz vinha?”, perguntou-lhe o velho Doutor Homem, meu pai, cujos contactos com a agricultura se resumiam a ter ouvido falar de hortas de onde se colhia salsa e onde cresciam ervilhas.
“Não se faz vinha.” Foi mais do que uma opinião. Daí em diante, improdutivos, ficámos quase românticos, olhando o nevoeiro entre as agulhas dos pinhais. Hoje, para lá dos muros da casa, observo as dunas e a chegada dos primeiros voluntários que se depositam sobre a areia, venerando o sol do Moledo.
in Domingo - Correio da Manhã - 11 Abril 2010
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