Acordar cedo uma vida inteira
O frio polar demora-se mais este ano nos areais de Moledo. Era justamente sobre Moledo que o velho doutor Homem, meu pai, gostava de relembrar que as praias de águas frias são um privilégio das classes abastadas, que se podem dar ao luxo de sofrer as agruras do mar do Minho como uma espécie de disciplina ou de sofrimento pessoal que os alivia de outras culpas; a generalidade das pessoas procura estações balneares mais amenas e onde existe aquilo a que dão o nome de turismo. Os velhos podem dar-se ao luxo de esperar que, nas manhãs de Moledo, o nevoeiro levante e o céu se ilumine; não têm pressa nem guardam uma finalidade para uma existência de que vislumbram um termo. E, tirando os velhos, apenas os mais jovens, que desconhecem a importância de acordar cedo, de manter horários e de tomar o pequeno-almoço antes das nove horas da manhã.
Habituei-me a acordar cedo por motivos de saúde, recuperando de uma série de consecutivas gripes que Dona Ester, minha mãe, acreditava que se curavam com ares do campo e da praia, transitando entre os pinhais do Minho e os areais batidos pela ventania galega. Logo de manhã, essa operação ginástica obrigava-me a despertar fisicamente e a apreciar coisas a que os meus sobrinhos raramente assistem: o pão estaladiço, o cheiro do café numa cozinha, a frescura do primeiro raio de sol, a maré vazia na praia. Até há pouco tempo, raramente conseguia companhia – para me restringir à família propriamente dita – para as minhas manhãs. Maria Luísa, durante as suas férias em Moledo, esforçava-se por não perder o pequeno-almoço de Dona Elaine, chegando sempre à sala de jantar a horas do almoço, mas convencida de que a madrugada estaria ainda para despontar. Esforcei-me, durante muito tempo, por adivinhar que coisas extraordinárias aconteciam à noite e que obrigariam tanta gente a privar-se do sono e do repouso a horas decentes.
Em determinadas circunstâncias (geralmente durante a sua semana integralmente passada no estio de Ponte de Lima, quente, abafado, cheio de romarias nas colinas e de bridge aos serões), o velho doutor Homem, meu pai, costumava fornecer o exemplo de Churchill, que se levantava tarde. É verdade; também Estaline acordava pelo meio-dia. Mas, durante as férias, diz-se que Churchill se levantava cedo para poder apreciar – como pintor que era – as cores do amanhecer. As cores, não sei; mas o apetite devorador, conheço-o de memória, antes de iniciar o regime alimentar da terceira idade. Mesmo com este frio polar pressinto que as manhãs têm ainda o mesmo encanto de há um século. Quanto às noites, pressinto que sejam apenas mais animadas.
in Domingo - Correio da Manhã - 4 de Abril 2010
Habituei-me a acordar cedo por motivos de saúde, recuperando de uma série de consecutivas gripes que Dona Ester, minha mãe, acreditava que se curavam com ares do campo e da praia, transitando entre os pinhais do Minho e os areais batidos pela ventania galega. Logo de manhã, essa operação ginástica obrigava-me a despertar fisicamente e a apreciar coisas a que os meus sobrinhos raramente assistem: o pão estaladiço, o cheiro do café numa cozinha, a frescura do primeiro raio de sol, a maré vazia na praia. Até há pouco tempo, raramente conseguia companhia – para me restringir à família propriamente dita – para as minhas manhãs. Maria Luísa, durante as suas férias em Moledo, esforçava-se por não perder o pequeno-almoço de Dona Elaine, chegando sempre à sala de jantar a horas do almoço, mas convencida de que a madrugada estaria ainda para despontar. Esforcei-me, durante muito tempo, por adivinhar que coisas extraordinárias aconteciam à noite e que obrigariam tanta gente a privar-se do sono e do repouso a horas decentes.
Em determinadas circunstâncias (geralmente durante a sua semana integralmente passada no estio de Ponte de Lima, quente, abafado, cheio de romarias nas colinas e de bridge aos serões), o velho doutor Homem, meu pai, costumava fornecer o exemplo de Churchill, que se levantava tarde. É verdade; também Estaline acordava pelo meio-dia. Mas, durante as férias, diz-se que Churchill se levantava cedo para poder apreciar – como pintor que era – as cores do amanhecer. As cores, não sei; mas o apetite devorador, conheço-o de memória, antes de iniciar o regime alimentar da terceira idade. Mesmo com este frio polar pressinto que as manhãs têm ainda o mesmo encanto de há um século. Quanto às noites, pressinto que sejam apenas mais animadas.
in Domingo - Correio da Manhã - 4 de Abril 2010
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