Apesar da chuva chegará o Verão
A vida mudava todos os anos, quando começava a época balnear, eufemismo usado na velha casa de Moledo para assinalar um levíssimo aumento das temperaturas ao aproximar-se o São João. A data era, na verdade, um marco no nosso calendário familiar e coincidia com uma série de actividades nem sempre olhadas com benevolência pelos autóctones.
A minha irmã protestou durante muito tempo pelo facto de eu me referir à população local como "os autóctones". Ela supunha que o termo era desagradável ou transportava significados humilhantes. Tive de explicar, pacientemente, que "autóctone" se referia, com dignidade, aos naturais e habitantes da terra.
Para afirmar que se tratava de uma época como qualquer outra, e para que isso ficasse claro, Dona Elaine, a governanta que desde há anos assegura a sobrevivência da casa, recusava-se a participar de "reuniões desnecessárias", como ela chamava aos períodos de café e conhaque depois dos almoços de domingo, durante a Primavera de Moledo. O que Dona Elaine pretendia demonstrar ao que restava daquela família de desordeiros e devoradores bem alimentados é que o almoxarifado era assunto seu, fosse qual fosse a estação do ano, estivessem ou não ocupados os quartos da casa.
Na verdade, eu entendo-a bem. Habituada há cerca de vinte anos a lidar com esta família que a viu envelhecer mais um pouco, a antiga emigrante brasileira (regressou do lado de lá como herdeira de um tio instalado no Rio) encolhia os ombros e seguia em frente. Ela sabe que o Verão é um mundo à parte durante o qual a natureza age por sua conta e risco, de acordo com leis imutáveis. O que acontece ao eremitério de Moledo durante o Verão é ser invadido por uma legião de sobrinhos que se encarrega de introduzir alguma indisciplina no refúgio do Matusalém da família. Essa legião cresceu consideravelmente e eu aprendo bastante durante a temporada, sobretudo sobre o mundo que nos espera.
Como estou a salvo, por questões meramente biológicas, de frequentar esse universo, limito-me a sugerir que não participarei, com eles, em cerimónias rituais para fumar haxixe ou entrar nas águas do mar de Moledo – assunto sobre o qual já falei na semana anterior. As minhas irmãs insistem em que eu devo ser poupado a esse festim estival; os meus irmãos não opinam; a minha sobrinha mais velha, Maria Luísa, informa que de Braga (onde vive) até Moledo "é um salto" e que pretende ocupar o seu quarto habitual durante os quinze dias em que assaltará a biblioteca; eu tomo nota da evolução da família, como um discípulo de Darwin.
in Domingo - Correio da Manhã - 18 Abril 2010
A minha irmã protestou durante muito tempo pelo facto de eu me referir à população local como "os autóctones". Ela supunha que o termo era desagradável ou transportava significados humilhantes. Tive de explicar, pacientemente, que "autóctone" se referia, com dignidade, aos naturais e habitantes da terra.
Para afirmar que se tratava de uma época como qualquer outra, e para que isso ficasse claro, Dona Elaine, a governanta que desde há anos assegura a sobrevivência da casa, recusava-se a participar de "reuniões desnecessárias", como ela chamava aos períodos de café e conhaque depois dos almoços de domingo, durante a Primavera de Moledo. O que Dona Elaine pretendia demonstrar ao que restava daquela família de desordeiros e devoradores bem alimentados é que o almoxarifado era assunto seu, fosse qual fosse a estação do ano, estivessem ou não ocupados os quartos da casa.
Na verdade, eu entendo-a bem. Habituada há cerca de vinte anos a lidar com esta família que a viu envelhecer mais um pouco, a antiga emigrante brasileira (regressou do lado de lá como herdeira de um tio instalado no Rio) encolhia os ombros e seguia em frente. Ela sabe que o Verão é um mundo à parte durante o qual a natureza age por sua conta e risco, de acordo com leis imutáveis. O que acontece ao eremitério de Moledo durante o Verão é ser invadido por uma legião de sobrinhos que se encarrega de introduzir alguma indisciplina no refúgio do Matusalém da família. Essa legião cresceu consideravelmente e eu aprendo bastante durante a temporada, sobretudo sobre o mundo que nos espera.
Como estou a salvo, por questões meramente biológicas, de frequentar esse universo, limito-me a sugerir que não participarei, com eles, em cerimónias rituais para fumar haxixe ou entrar nas águas do mar de Moledo – assunto sobre o qual já falei na semana anterior. As minhas irmãs insistem em que eu devo ser poupado a esse festim estival; os meus irmãos não opinam; a minha sobrinha mais velha, Maria Luísa, informa que de Braga (onde vive) até Moledo "é um salto" e que pretende ocupar o seu quarto habitual durante os quinze dias em que assaltará a biblioteca; eu tomo nota da evolução da família, como um discípulo de Darwin.
in Domingo - Correio da Manhã - 18 Abril 2010
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