Nuvens de cinza sobre Moledo
A minha sobrinha Maria Luísa admitiu que Portugal estava isolado do mundo porque não pôde regressar de Londres devido ao vulcão islandês. A presença da Islândia na biblioteca da família deve-se, naturalmente, a Pierre Loti e a ‘Pescador da Islândia’, que não tem rigorosamente a ver com a Islândia, e a ‘Viagem ao Centro da Terra’, de Júlio Verne, que nos envia por um túnel islandês até ao lugar onde as esferas se movem. A referência às esferas é extemporânea, uma vez que só uma pequena percentagem de leitores sabe que os nossos antepassados supunham que no centro da Terra existia um mecanismo que comandava os movimentos do planeta. Ai de nós.
Tirando isso, a Islândia era muito mais longe do que o pico enevoado de Santa Tecla ou as falésias de Ribadeo (onde os Homem de outras eras se deslocavam durante a temporada da ostras – eles eram leitores de Cunqueiro, especialmente o Tio Alberto, o bibliómano de São Pedro dos Arcos) – e, portanto, não existia com propriedade.
O velho Doutor Homem, meu pai, cuja formação intelectual (onde se incluía o corte dos fatos, copiados de Savile Row por um mestre alfaiate dos Clérigos) deve quase tudo a Londres, era mais cosmopolita e supunha – com razão – que o mundo se estendia pelo menos até às Hébridas, onde o Doutor Johnson peregrinou para repousar da literatura, da biblioteca e das tavernas à beira do Tamisa.
De qualquer modo, a família tinha do mundo uma ideia razoavelmente ilimitada. Tios afastados ou próximos, parentes vetustos, primos desagradáveis ou familiares obscuros instalaram-se em pontos díspares do velho império, do Brasil ao planalto central de Angola, do Alentejo (desde que fosse longe de Évora Monte) aos picos enevoados de Paredes de Coura. Simplesmente, o resto do mundo não existia enquanto lá não se pusesse um pé (excepção feita às minhas irmãs, que viajaram pelas Caraíbas e pelos spas tailandeses). A Islândia teria vulcões por sua livre vontade desde que não interferisse no andamento das coisas – porque a maior parte das viagens se faziam de comboio ou de carro, atravessando as noites profundas do velho continente ou as recordações da sua civilização.
Maria Luísa viu as coisas com algum ressentimento. Parte dos portugueses gemeu de tristeza por não ter sido atingida pela nuvem de cinza. Até Dona Elaine, a governanta de Moledo, durante o pequeno-almoço de segunda-feira passada, deu conta do seu orgulho, encantada: “O senhor doutor já viu? A nuvem já chegou aos Açores.” Felicitei-a. Mas olhei para o céu, temeroso.
in Domingo - Correio da Manhã - 25 Abril 2010
Tirando isso, a Islândia era muito mais longe do que o pico enevoado de Santa Tecla ou as falésias de Ribadeo (onde os Homem de outras eras se deslocavam durante a temporada da ostras – eles eram leitores de Cunqueiro, especialmente o Tio Alberto, o bibliómano de São Pedro dos Arcos) – e, portanto, não existia com propriedade.
O velho Doutor Homem, meu pai, cuja formação intelectual (onde se incluía o corte dos fatos, copiados de Savile Row por um mestre alfaiate dos Clérigos) deve quase tudo a Londres, era mais cosmopolita e supunha – com razão – que o mundo se estendia pelo menos até às Hébridas, onde o Doutor Johnson peregrinou para repousar da literatura, da biblioteca e das tavernas à beira do Tamisa.
De qualquer modo, a família tinha do mundo uma ideia razoavelmente ilimitada. Tios afastados ou próximos, parentes vetustos, primos desagradáveis ou familiares obscuros instalaram-se em pontos díspares do velho império, do Brasil ao planalto central de Angola, do Alentejo (desde que fosse longe de Évora Monte) aos picos enevoados de Paredes de Coura. Simplesmente, o resto do mundo não existia enquanto lá não se pusesse um pé (excepção feita às minhas irmãs, que viajaram pelas Caraíbas e pelos spas tailandeses). A Islândia teria vulcões por sua livre vontade desde que não interferisse no andamento das coisas – porque a maior parte das viagens se faziam de comboio ou de carro, atravessando as noites profundas do velho continente ou as recordações da sua civilização.
Maria Luísa viu as coisas com algum ressentimento. Parte dos portugueses gemeu de tristeza por não ter sido atingida pela nuvem de cinza. Até Dona Elaine, a governanta de Moledo, durante o pequeno-almoço de segunda-feira passada, deu conta do seu orgulho, encantada: “O senhor doutor já viu? A nuvem já chegou aos Açores.” Felicitei-a. Mas olhei para o céu, temeroso.
in Domingo - Correio da Manhã - 25 Abril 2010
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