Uma fortuna demasiado discreta
Os homens procuram a fortuna onde quer que ela esteja. Um dos velhos tios da nossa genealogia emigrou para o Brasil depois de um caso amoroso que lhe consumiu anos de tranquilidade. O argumento, usado durante todo o século XX, era diferente: partiu em busca da fortuna. A família nunca fez muitas perguntas sobre a história, e ele regressou nos anos sessenta para se recolher a uma quinta nos arredores de Afife, de onde via o mar, os cobradores de impostos e um resto de arvoredo que o separava das montanhas. Do Pernambuco trouxe, de facto, a fortuna.
Os portugueses não andaram pelo mundo fora para, nas palavras de hoje, “criar riqueza”. Para “criar riqueza” é necessário disciplina, um plano, fundos, vontade férrea – e uma espécie de inteligência que não se produzia em Coimbra (ai de nós) nem nos Ministérios: a que estava relacionada com as coisas práticas e com o chamado “longo prazo”. Assim, nas colónias ou onde quer que fosse, os portugueses enriqueceram sem criar riqueza, ou seja, fizeram fortuna. Depois, por vaidade e, em alguns casos, por embirração com a pátria, também realizaram grandes feitos e deixaram obra. Um português gosta de deixar obra, da mesma forma que um pai de família do Minho gosta de prover os seus filhos com uma herança.
Os holandeses, que ocuparam o Pernambuco durante alguns anos, não se limitaram a explorar o açúcar brasileiro – levaram bibliotecas e arquitectos, construíram jardins e pontes, estudaram a botânica dos trópicos, lançaram as bases de uma pequena civilização entre a barbárie da época. Os bárbaros, digamos, eram os plantadores de cana de açúcar. Quando a exploração local começou a ficar deficitária, de Haia mandaram-nos regressar, coisa que a batalha de Guararapes acelerou em definitivo. Um dos antepassados dos Homem governou episodicamente o forte de Itamaracá, de onde os Orange holandeses foram expulsos.
A fortuna do tio Alfredo nunca levantou suspeitas, por pudor – era discreta e dava-se ao luxo de não ser exibida. Ao contrário dos torna-viagem do início do século, a quinta de Afife era um prodígio de discrição e de sensatez. O tio Alfredo era um ser moral que trazia na pela o ferrete dos trópicos. A tia Benedita, a matriarca da família, nunca gostou dele; não por ser rico, mas porque suspeitava que, no intervalo das colheitas e do desbravamento de terras conquistadas ao sertão, ele tinha sucumbido à luxúria local e se deixara viver em pecado. Era verdade. Viveu em grande, fez fortuna, cumpriu um destino. Morreu tranquilamente, a meio de uma merenda de melancia.
in Domingo - Correio da Manhã - 15 Novembro 2009
Os portugueses não andaram pelo mundo fora para, nas palavras de hoje, “criar riqueza”. Para “criar riqueza” é necessário disciplina, um plano, fundos, vontade férrea – e uma espécie de inteligência que não se produzia em Coimbra (ai de nós) nem nos Ministérios: a que estava relacionada com as coisas práticas e com o chamado “longo prazo”. Assim, nas colónias ou onde quer que fosse, os portugueses enriqueceram sem criar riqueza, ou seja, fizeram fortuna. Depois, por vaidade e, em alguns casos, por embirração com a pátria, também realizaram grandes feitos e deixaram obra. Um português gosta de deixar obra, da mesma forma que um pai de família do Minho gosta de prover os seus filhos com uma herança.
Os holandeses, que ocuparam o Pernambuco durante alguns anos, não se limitaram a explorar o açúcar brasileiro – levaram bibliotecas e arquitectos, construíram jardins e pontes, estudaram a botânica dos trópicos, lançaram as bases de uma pequena civilização entre a barbárie da época. Os bárbaros, digamos, eram os plantadores de cana de açúcar. Quando a exploração local começou a ficar deficitária, de Haia mandaram-nos regressar, coisa que a batalha de Guararapes acelerou em definitivo. Um dos antepassados dos Homem governou episodicamente o forte de Itamaracá, de onde os Orange holandeses foram expulsos.
A fortuna do tio Alfredo nunca levantou suspeitas, por pudor – era discreta e dava-se ao luxo de não ser exibida. Ao contrário dos torna-viagem do início do século, a quinta de Afife era um prodígio de discrição e de sensatez. O tio Alfredo era um ser moral que trazia na pela o ferrete dos trópicos. A tia Benedita, a matriarca da família, nunca gostou dele; não por ser rico, mas porque suspeitava que, no intervalo das colheitas e do desbravamento de terras conquistadas ao sertão, ele tinha sucumbido à luxúria local e se deixara viver em pecado. Era verdade. Viveu em grande, fez fortuna, cumpriu um destino. Morreu tranquilamente, a meio de uma merenda de melancia.
in Domingo - Correio da Manhã - 15 Novembro 2009
<< Home