Recordações de amor num mundo antigo
O mundo não foi feito para ser perfeito. Na semana passada mencionei as viagens do meu Tio Alberto – o mais inconsolável viajante da família, contemporâneo dos anos de oiro da década de cinquenta e sessenta – e perguntava-me por que razão não saí eu do Minho. Saí. Saí e voltei, como todos os seres com medo de se esquecerem do caminho de casa.
As minhas viagens foram sempre uma profilaxia do espírito ou, então, uma obrigação ditada pelos deveres familiares e pelo calendário das estações. Herdei esse ritmo: o velho Doutor Homem, meu pai, suspirava quando chegavam os primeiros dias de Primavera, sabendo que se aproximavam aqueles tempos de asfixia em que teria de dispensar a pátria e os seus conterrâneos para poder sobreviver a ambos. Eram viagens planeadas com o rigor de um teodolito – e cujo plano se alterava permanentemente, consoante a bolsa e a disposição dos Elementos. Várias vezes partimos – a família ocupava o velho carro com parcimónia e sentido da economia – para Biarritz com a sensação de que nunca lá chegaríamos, tal era o seu medo (justificado) de encontrar visitantes do Porto a transformar numa extensão da Foz aquilo que era um retrato das velhas férias românticas da desaparecida nobreza europeia. Tratava-se de uma promessa permanente: visitar Biarritz. Foi lá, numa tarde de cinza enevoada, que o velho Doutor Homem, meu pai, pediu Dona Ester em casamento. Ele conhecia o mundo, tinha profissão e vestia fatos de ‘tweed’, uma excentricidade britânica; ela frequentava Biarritz e não se constipava nem tinha medo do sol de Verão. Estavam talhados um para o outro, mesmo que não fossem um casal perfeito. Dona Ester nunca impediu as obsessões triviais ou extravagantes de um advogado bibliófilo do Velho Porto, compreendendo que um homem deve respirar o ar que respira, ou fenece; o velho Doutor Homem, meu pai, deve ter lido todos os romances de D. Agustina antes de ela os ter escrito (com aquela sabedoria inteligente que as nossas esquerdas nunca desculparam), porque percebia que o poder oculto, o poder secreto, o poder – finalmente – pertenceria de pleno direito à sua mulher e a não a ele. Para isso contribuíram anos e a anos de compreensão e de insinceridade – coisas que estão na base do respeito e da reservada sensualidade familiar.
Vistos de fora, pareciam estranhos num mundo de gente conhecida. Mas uma cumplicidade sagrada e profunda unia-os na vida e prolongou o amor: era aquela indiferença “ao romance”, o desprezo pelo romantismo lamechas. Eram gente como hoje se encontra raramente.
in Domingo - Correio da Manhã - 1 Novembro 2009
As minhas viagens foram sempre uma profilaxia do espírito ou, então, uma obrigação ditada pelos deveres familiares e pelo calendário das estações. Herdei esse ritmo: o velho Doutor Homem, meu pai, suspirava quando chegavam os primeiros dias de Primavera, sabendo que se aproximavam aqueles tempos de asfixia em que teria de dispensar a pátria e os seus conterrâneos para poder sobreviver a ambos. Eram viagens planeadas com o rigor de um teodolito – e cujo plano se alterava permanentemente, consoante a bolsa e a disposição dos Elementos. Várias vezes partimos – a família ocupava o velho carro com parcimónia e sentido da economia – para Biarritz com a sensação de que nunca lá chegaríamos, tal era o seu medo (justificado) de encontrar visitantes do Porto a transformar numa extensão da Foz aquilo que era um retrato das velhas férias românticas da desaparecida nobreza europeia. Tratava-se de uma promessa permanente: visitar Biarritz. Foi lá, numa tarde de cinza enevoada, que o velho Doutor Homem, meu pai, pediu Dona Ester em casamento. Ele conhecia o mundo, tinha profissão e vestia fatos de ‘tweed’, uma excentricidade britânica; ela frequentava Biarritz e não se constipava nem tinha medo do sol de Verão. Estavam talhados um para o outro, mesmo que não fossem um casal perfeito. Dona Ester nunca impediu as obsessões triviais ou extravagantes de um advogado bibliófilo do Velho Porto, compreendendo que um homem deve respirar o ar que respira, ou fenece; o velho Doutor Homem, meu pai, deve ter lido todos os romances de D. Agustina antes de ela os ter escrito (com aquela sabedoria inteligente que as nossas esquerdas nunca desculparam), porque percebia que o poder oculto, o poder secreto, o poder – finalmente – pertenceria de pleno direito à sua mulher e a não a ele. Para isso contribuíram anos e a anos de compreensão e de insinceridade – coisas que estão na base do respeito e da reservada sensualidade familiar.
Vistos de fora, pareciam estranhos num mundo de gente conhecida. Mas uma cumplicidade sagrada e profunda unia-os na vida e prolongou o amor: era aquela indiferença “ao romance”, o desprezo pelo romantismo lamechas. Eram gente como hoje se encontra raramente.
in Domingo - Correio da Manhã - 1 Novembro 2009
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