Lições de história numa família Miguelista
O volume (com anotações marginais em lápis ou em tinta azul pardacenta) estava reservado às leituras seculares do Verão, geralmente passado na tranquilidade de Ponte de Lima. Era o tempo ideal para disciplinar a historiografia. Será muito difícil esquecer aquelas tardes cheias de luz, estivais, preguiçosas, às vezes intermináveis, de outras vezes curtas demais – e por isso não sei por quem A Quadrilha dos Marçais foi escolhido para leitura. Naqueles anos não havia propriamente ‘leituras de Verão’ ditadas pela moda mais recente. No Minho dos anos cinquenta as novidades demoravam bastante a chegar e, quando chegavam, depois de o velho Doutor Homem ter transportado a família até ao velho casarão de granitos cobertos de musgo e hera, já tinham passado de moda.
O Tio Alberto era uma excepção comovente e o livro pertencia-lhe. Tinha sido publicado em 1938 e falava da guerrilha e das perseguições entre as margens do Douro e do Côa, primeiro entre ‘miguelistas’ e ‘liberais’, depois entre fiéis à rainha ou convictos da Junta do Porto e da Patuleia. No fundo, era a prova de que a província, a velha província dos nossos antepassados, conhecera a crueldade e a violência da mesma forma que as cidades a tinham promovido. Pelas suas páginas escorria sangue justo e injustificado, relatos de emboscadas nos vales de amendoeiras que limitavam o cenário bucólico e produtivo das vinhas do Douro, suspeitas de assassinatos decididos em casas de família. A ideia de que existia uma bondade natural no género humano, uma sensibilidade ‘rural’ e muito dada a concertos campestres, caía por terra depois dessas descrições e dos inventários de atrocidades cometidas em nome das bandeiras de ocasião.
O velho Doutor Homem, meu pai, limitava-se a encolher os ombros, encarando com grande naturalidade o desfile de mortandades e de crimes, mencionando a necessidade de relativizar o nosso espanto. “Nada que não tivesse acontecido.”
A minha sobrinha Maria Luísa descobriu o livro num destes fins-de-semanas polvilhados pela tepidez de Maio, mas afligido por uma trovoada cujos relâmpagos anunciavam um entardecer tranquilo sobre os pinhais de Moledo. As minudências de história pátria são pouco comentadas para que não pareçam leviandades. No fundo, as hordas vão e vêm, deixam um rasto de sangue e de desperdício. Tem sido assim desde o princípio das coisas, enquanto nos limitamos a escolher o que não pode ser escolhido: o nosso passado. A família não o esconde: fomos miguelistas de primeira e de última hora. Já não podemos escolher outra coisa.
in Domingo - Correio da Manhã - 31 Maio 2009
O Tio Alberto era uma excepção comovente e o livro pertencia-lhe. Tinha sido publicado em 1938 e falava da guerrilha e das perseguições entre as margens do Douro e do Côa, primeiro entre ‘miguelistas’ e ‘liberais’, depois entre fiéis à rainha ou convictos da Junta do Porto e da Patuleia. No fundo, era a prova de que a província, a velha província dos nossos antepassados, conhecera a crueldade e a violência da mesma forma que as cidades a tinham promovido. Pelas suas páginas escorria sangue justo e injustificado, relatos de emboscadas nos vales de amendoeiras que limitavam o cenário bucólico e produtivo das vinhas do Douro, suspeitas de assassinatos decididos em casas de família. A ideia de que existia uma bondade natural no género humano, uma sensibilidade ‘rural’ e muito dada a concertos campestres, caía por terra depois dessas descrições e dos inventários de atrocidades cometidas em nome das bandeiras de ocasião.
O velho Doutor Homem, meu pai, limitava-se a encolher os ombros, encarando com grande naturalidade o desfile de mortandades e de crimes, mencionando a necessidade de relativizar o nosso espanto. “Nada que não tivesse acontecido.”
A minha sobrinha Maria Luísa descobriu o livro num destes fins-de-semanas polvilhados pela tepidez de Maio, mas afligido por uma trovoada cujos relâmpagos anunciavam um entardecer tranquilo sobre os pinhais de Moledo. As minudências de história pátria são pouco comentadas para que não pareçam leviandades. No fundo, as hordas vão e vêm, deixam um rasto de sangue e de desperdício. Tem sido assim desde o princípio das coisas, enquanto nos limitamos a escolher o que não pode ser escolhido: o nosso passado. A família não o esconde: fomos miguelistas de primeira e de última hora. Já não podemos escolher outra coisa.
in Domingo - Correio da Manhã - 31 Maio 2009