domingo, maio 03, 2009

O melhor das famílias não está nelas próprias

Dona Elaine enviuvou cedo e regressou do Brasil no final dos anos setenta para gozar com placidez um pé de meia constituído por poupanças e investimentos modestos no Rio de Janeiro de então. Tal como as mulheres do Minho de antanho, ela tinha as suas arrecadas. Há roda de vinte anos que comanda, organiza, chefia e administra o eremitério de Moledo, vigiando com discrição e autoridade os meus medicamentos, as minhas refeições e os agasalhos de que me rodeio nesta Primavera mais fria (ela garante que “sempre teve tino para médica”) – além de preparar a família para a obrigatoriedade das efemérides públicas ou privadas. Na linguagem dos modernos ela é, pois, “uma gestora”, mas com capacidades mais amplas e credíveis – e com um dedo sublime para o arroz de pato, a cabidela, o cabrito no forno e os vários bacalhaus com que a nossa tradição nos honra, sem contar com o peixe cozido com que me sustento na maior parte do tempo, honrando a idade e as recomendações do meu clínico de Viana.

Céptica como uma mulher do vetusto Minho, cautelosa, ela desdenha das grandes novidades, a que atribui – quase sempre – a intenção de complicar a vida. Longe das disputas ideológicas que se travam pelo universo fora, Dona Elaine é a garantia de que tudo tem uma ordem, um sentido e uma necessidade para acontecer. Com o tempo, assemelha-se parcialmente à Tia Benedita, a matriarca da família (que ela não conheceu), e, tal como ela, fica tão desapontada com a falta de pontualidade das nêsperas como com a chuva no domingo de Páscoa.

Mais do que tudo isso – D. Elaine é o emblema da casa de Moledo, o símbolo dessa ordem que paira sobre todas as coisas e até sobre os visitantes, fortuitos ou regulares. Os meus sobrinhos (especialmente a minha sobrinha Maria Luísa) mantêm que se trata de uma reaccionária profissional disfarçada de governanta e que apenas usa uma máscara afável e simpática. Eles conhecem pouco de história pátria e não podem avaliar até que ponto o Minho Antigo, essa conjugação de catolicismo popular e de pragmatismo (na política e na vida de todos os dias) constitui uma fortaleza inexpugnável, capaz de resistir por muito tempo às ameaças da modernidade. O velho Doutor Homem, meu pai, gostaria de tê-la conhecido, nem que fosse para sustentar a tese, bastante polémica até há uns anos (aqui dentro de casa, aos almoços de domingo), de que o melhor das famílias não está nelas próprias – mas nas proximidades.

Ao ler estas crónicas, Dona Elaine sorri – ela sabe que a vaidade de um velho é uma coisa inofensiva. Apenas o alimenta de alguma esperança.

in Domingo - Correio da Manhã - 3 Maio 2009