Princípios de aritemética e educação antiga
O conjunto de trabalhos escolares da minha infância não se resumia a ler, escrever e contar. Era preciso, também, limpar os velhos aparos de pena, verificar os tinteiros e ajudar nos trabalhos de jardinagem nos canteiros da escola. Havia o regresso da escola, a pé, pelos passeios molhados de Inverno. Os conhecimentos de aritmética básica prolongavam-se no tempo, estavam relacionados com um mundo cheio de limites e de fronteiras, e de operações mentais que exigiam mais memória do que artifício. Acreditava-se que a memória era um bem inestimável e indispensável, que era necessário treinar, aperfeiçoar e defender. A geografia da Pátria, há setenta ou oitenta anos, era mais complexa (hoje não se estuda), feita de linhas férreas que percorriam vales ao longo dos rios, perfuravam as montanhas e se estendiam por lezírias ou planaltos a que era preciso dar um nome. A história estava salpicada de milagres e coincidências maravilhosas que explicavam a nossa existência como povo escolhido – uma espécie de optimismo fundamental, cheio de auto-estima e de orgulho.
Não fosse o cepticismo em que fomos (eu, primeiro; os meus irmãos, depois) criados, coroado pelo riso escarninho do velho Doutor Homem, meu pai, e acreditaríamos que a pátria teria nascido com o vetustíssimo D. Afonso num planeta mais ou menos deserto ou, pelo menos, cercado de castelhanos e de pretinhos que tínhamos ido salvar em África e no Brasil. Felizmente, a família manteve sempre um certo horror ao vazio e às coisas simples. Esse catálogo de heróis, navegantes, guerreiros, exploradores, artistas, religiosos e vencedores era frequentemente alvo dos velhíssimos ressentimentos domésticos, que não perdoavam nem a glória inquestionada do “Frei Luís de Sousa” nem as colecções de estampas da I República promovendo o seu nacionalismo pateta, nem sequer os primeiros acordes de “A Portuguesa” – cuja autoria, certamente por ser insensível de ouvido, a Tia Benedita atribuía ao regente de uma banda de música dos Arcos de Valdevez que acompanhara o Tio Henrique nas deambulações por África, e a quem contagiara a paixão pelo oboé.
Foi, assim, criada uma geração de rebeldes antes do tempo em que a rebeldia passou a ser incentivada na escola. As minhas irmãs lamentam-se e acham que perderam tempo com ninharias, apesar de nunca terem sido impedidas de ir aos bailes dos Fenianos. Elas nunca leram Ortega y Gasset, mas interpretam bem a doutrina – ao inverso. Gostam da vida assim mesmo, e encontram muitas virtudes na democracia.
in Domingo - Correio da Manhã - 10 Maio 2009
Não fosse o cepticismo em que fomos (eu, primeiro; os meus irmãos, depois) criados, coroado pelo riso escarninho do velho Doutor Homem, meu pai, e acreditaríamos que a pátria teria nascido com o vetustíssimo D. Afonso num planeta mais ou menos deserto ou, pelo menos, cercado de castelhanos e de pretinhos que tínhamos ido salvar em África e no Brasil. Felizmente, a família manteve sempre um certo horror ao vazio e às coisas simples. Esse catálogo de heróis, navegantes, guerreiros, exploradores, artistas, religiosos e vencedores era frequentemente alvo dos velhíssimos ressentimentos domésticos, que não perdoavam nem a glória inquestionada do “Frei Luís de Sousa” nem as colecções de estampas da I República promovendo o seu nacionalismo pateta, nem sequer os primeiros acordes de “A Portuguesa” – cuja autoria, certamente por ser insensível de ouvido, a Tia Benedita atribuía ao regente de uma banda de música dos Arcos de Valdevez que acompanhara o Tio Henrique nas deambulações por África, e a quem contagiara a paixão pelo oboé.
Foi, assim, criada uma geração de rebeldes antes do tempo em que a rebeldia passou a ser incentivada na escola. As minhas irmãs lamentam-se e acham que perderam tempo com ninharias, apesar de nunca terem sido impedidas de ir aos bailes dos Fenianos. Elas nunca leram Ortega y Gasset, mas interpretam bem a doutrina – ao inverso. Gostam da vida assim mesmo, e encontram muitas virtudes na democracia.
in Domingo - Correio da Manhã - 10 Maio 2009
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