domingo, maio 24, 2009

O senhor marquês de Chaves e outras minudências da Pátria

Em horas de maior dificuldade o velho Doutor Homem, meu pai, usava Oliveira Martins como argumento e barreira contra a insanidade. Ele acreditava que a leitura do ‘Portugal Contemporâneo’ era um bálsamo para o radicalismo e uma ventania refrescante o suficiente para impedir excessos e entusiasmos ideológicos. Tinha razão, como de costume – mas Portugal não lhe seguiu o conselho, também como de costume. A verdade é que não podia. O ‘Portugal Contemporâneo’ é a obra de um homem desiludido com o seu passado próximo, desagradando aos vintistas e revolucionários porque não lhes gabava Saldanha nem o príncipe brasileiro; e desagradando aos miguelistas e conservadores – nós – porque não os absolvia das forcas nem da cobiça bandoleira. O retrato ajusta-se.

De facto, quando o velho Doutor Homem, meu pai, queria fustigar os da sua – a nossa – trincheira, limitava-se a invocar a figura do senhor marquês de Chaves a comportar-se como um vilão nas freguesias de Amarante ou da Régua. Havia elementos sagrados, a começar pelo Príncipe, mas todos nós sabíamos (até por experiência própria, vale a pena recordar) que o exército ideológico conservador estava cheio de cicatrizes. Essas cicatrizes foram alargadas pela mania portuguesa de fazer pregação sem necessidade. A vitória dos ‘liberais’, as assinaturas na Concessão de Évora Monte e a partida do senhor D. Miguel para o exílio (a que a Tia Benedita, sempre oportuna, gostava de acrescentar o fuzilamento do Remexido às mãos das milícias radicais do Algarve – que só puderam matá-lo usando o expediente da traição) transformou os manuais da História Pátria numa confederação de vitoriosos e vencedores. Ou seja, numa galeria de arrogantes. Os portugueses foram, doravante, educados a acreditar que todos os conservadores eram facínoras ao serviço da Áustria, que todos os padres eram gémeos do Frei Januário dos ‘Fidalgos da Casa Mourisca’ e que a regeneração e salvação da Pátria foi obra dos marujos e exilados que desembarcaram na Praia dos Ladrões como ‘os bravos do Mindelo’, e que depois se deitaram ao trabalho, incansáveis e competentes, transbordando de predicados.

Quase duzentos anos depois, as feridas estão saradas por falta de comparência dos derrotados – nós. A minha sobrinha alega que apenas existem três tipos de miguelistas hoje em dia: o primeiro, é composto de remediados descendentes dos fidalgos transmontanos e minhotos; o segundo, constituído de leitores de Camilo (à falta do próprio Camilo); o terceiro, composto apenas por mim, sentado à mesa da biblioteca neste eremitério de Moledo, manejando a velha Parker que herdei e que ela herdará. Conto que a caneta a faça um nadinha mais conservadora. O resto vai por si.

in Domingo - Correio da Manhã - 24 Maio 2009