domingo, maio 17, 2009

A crise do crédito e a memória do tempo

A crise do crédito preocupa os meus dois irmãos, que murmuram por números quando lhes falo por extenso. É um hábito. Considerado a múmia da família, uma espécie de Matusalém minhoto, sou também visto como um sujeito que não aprecia os grandes exercícios de contabilidade e finanças, um domínio reservado à estratosfera da inteligência.

O crédito é um assunto antigo na família e na Pátria. Muitas vezes se discutia apaixonadamente o sistema bancário – o velho Doutor Homem, meu pai, foi um dos primeiros especialistas em direito bancário e, entrando no escritório pela sua mão, segui-lhe as pisadas. Admito que já então se manifestava a minha preguiça aliada à falta de originalidade.

Nasci velho e não passei por essa fase dolorosa da adolescência – que encontrei apenas mais tarde, durante a cura de um mal de amor. Na época, Dona Ester, minha mãe, recomendou-me alguma diversão e areias do Tamariz durante um Verão inteiro; ela achava que mar, banhos de sol e refeições completas eram um bálsamo para almas feridas. Segui o conselho e fui enviado ao Brasil, onde, durante três longos meses (que depois me pareceram curtos) me tornei, simultaneamente, admirador e detractor de Juscelino Kubitschek. Soube da sua morte pelas páginas de ‘O Primeiro de Janeiro’ a meio de uma gripe que me reteve na cama durante alguns dias, em 1976 – e recordei, na época, a sua figura de galã moreno e alto, de rosto limpo e riso fácil, sem-vergonha. Actrizes estrangeiras e cantores românticos passeavam-se por Copacabana, quando visitei o Rio de Janeiro e, inadvertidamente, me comportei como um adolescente salvo por um romance que teria de durar o tempo que durou. Kubitschek iluminava esses anos com os seus sonhos de um Brasil dourado. Por detrás desse brilho de glória, civilização e cosmopolitismo, o dinheiro jorrava em bom ritmo, vindo não se sabe de onde. E, mesmo fascinado por Kubitschek, tornei-me também seu detractor, porque alguém teria de liquidar a factura desses festejos e dessas exibições no Jockey Club (Brasília ainda não existia). A isso se resumia a questão do crédito. A isso se resume ainda hoje.

Muitos anos depois, já após a morte de Kubitschek, o cenário repetiu-se em Portugal. A memória de um velho que não quer mal aos outros, mas que frequentemente se preocupa com o mal que os outros sofrem, é um resumo de tragédias e de farsas. A crise do crédito existe porque o crédito não é compensado.

A minha sobrinha Maria Luísa, a esquerdista da família, segue e compreende esta lógica, mas não concorda com ela – por preconceito.

in Domingo - Correio da Manhã - 17 Maio 2009