Meditações escusadas
Com esta idade, o que sobrará da minha vida? Dizem-me que esta pergunta é inútil, o que se compreende neste mundo em que tudo tem um fim e uma finalidade. Tentei, com vagar (mas sem paciência), explicar a um dos meus sobrinhos que há uma distinção entre "fim" e "finalidade" e que não se trata apenas de uma questão de dicionário – trata-se de um sopro e, ao mesmo tempo, de uma questão com a eternidade. Por isso se faz essa pergunta: "Com esta idade, o que sobrará da minha vida?"
Os Homem, por preguiça mais do que por humildade (virtude que não se encontra com frequência no seu idioma), "deixaram-se estar". A expressão é, como o leitor já percebeu, da Tia Benedita – a única que compreendia as indecências da família antes de elas ocorrerem –, e resume a História de Portugal desde que o senhor Dom Miguel embarcou na derradeira viagem de Sines para Génova. "Deixar-se estar" significava pertencer a um mundo mas perceber que ele não tinha sentido. Esse mundo, ao qual os Homem pertenciam, ruíra de velhice, desmoronara-se como as magníficas construções dos velhos impérios. Simplesmente, em vez de deixarem uma amostra da glória de outrora, limitaram-se a ser vistos apenas como uma ruína. Nós temos vivido entre essas ruínas, acompanhando o mundo pela imprensa, cultivando as rosas – como o poeta – e observando como as novas gerações regressam aos velhos padrões, desiludidas por anos de rebeldia que provocam o cansaço habitual (além de serem nefastos para a saúde). O meu avô foi o mais sério intérprete desse sentimento. Ignoro como era a sua, digamos, "vida interior" – e decerto a tinha, porque era muito calado –, mas reconheço o esforço que colocava em defender a pequena felicidade da sua tribo.
O velho Doutor Homem, meu pai, embora recusando-se a admitir que "sabia o que era melhor para a sua descendência" (porque, para os seus padrões de tolerância, aprendidos em bravos anos de anglofilia, isso representava uma perniciosa intromissão na vida dos outros), mostrou melhor do que ninguém em que consistia a felicidade de ser ignorado. Dona Ester, minha mãe, apreciava-lhe esse heroísmo, raríssimo entre as pessoas do século passado, que buscavam a glória e o reconhecimento dos outros; ele limitava-se a levar-nos em viagem e a abrir as portas da paisagem. Passados estes anos, quando faço perguntas absurdas ("Com esta idade, o que sobrará da minha vida?"), lembro-me disso. Não me sobra nada. Vivi tudo.
in Domingo - Correio da Manhã - 14 Setembro 2008
Os Homem, por preguiça mais do que por humildade (virtude que não se encontra com frequência no seu idioma), "deixaram-se estar". A expressão é, como o leitor já percebeu, da Tia Benedita – a única que compreendia as indecências da família antes de elas ocorrerem –, e resume a História de Portugal desde que o senhor Dom Miguel embarcou na derradeira viagem de Sines para Génova. "Deixar-se estar" significava pertencer a um mundo mas perceber que ele não tinha sentido. Esse mundo, ao qual os Homem pertenciam, ruíra de velhice, desmoronara-se como as magníficas construções dos velhos impérios. Simplesmente, em vez de deixarem uma amostra da glória de outrora, limitaram-se a ser vistos apenas como uma ruína. Nós temos vivido entre essas ruínas, acompanhando o mundo pela imprensa, cultivando as rosas – como o poeta – e observando como as novas gerações regressam aos velhos padrões, desiludidas por anos de rebeldia que provocam o cansaço habitual (além de serem nefastos para a saúde). O meu avô foi o mais sério intérprete desse sentimento. Ignoro como era a sua, digamos, "vida interior" – e decerto a tinha, porque era muito calado –, mas reconheço o esforço que colocava em defender a pequena felicidade da sua tribo.
O velho Doutor Homem, meu pai, embora recusando-se a admitir que "sabia o que era melhor para a sua descendência" (porque, para os seus padrões de tolerância, aprendidos em bravos anos de anglofilia, isso representava uma perniciosa intromissão na vida dos outros), mostrou melhor do que ninguém em que consistia a felicidade de ser ignorado. Dona Ester, minha mãe, apreciava-lhe esse heroísmo, raríssimo entre as pessoas do século passado, que buscavam a glória e o reconhecimento dos outros; ele limitava-se a levar-nos em viagem e a abrir as portas da paisagem. Passados estes anos, quando faço perguntas absurdas ("Com esta idade, o que sobrará da minha vida?"), lembro-me disso. Não me sobra nada. Vivi tudo.
in Domingo - Correio da Manhã - 14 Setembro 2008
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