As coisas de Outono
O meu médico de Viana do Castelo acha que o meu corpo sobrevive mais uns tempos – depreendi isso quando percebi que manteve a minha dose habitual de comprimidos para os males gerais e apenas confirmou a existência dos males particulares. A minha visita semestral já não é como a de outros tempos, quando ia carregado de amostras e relatórios de "outros especialistas". Com esta idade sou apenas uma "amostra geral" – nada de especial. Digamos que a idade desvaloriza as doenças ou a necessidade de sobreviver. A certa altura, ninguém fica admirado com alterações de humor, defeitos de funcionamento e deficiências motoras, que ficam a ser o retrato de conjunto deste vosso cronista.
O velho Doutor Homem, meu pai, habituado – pela sua profissão de advogado – a escutar queixas e a ouvi-las com respeito (ou perderia a clientela), desvalorizava as suas próprias queixas, menosprezando achaques e avarias no seu sistema hepático. Ele dizia que, ao contrário do que se pensava, se envelhecia com mais dignidade se poupássemos nas queixas porque o rio do mundo corre quase na mesma direcção. A lição do estóico – ou do epicurista – tem a ver com a contemplação desse rio, enumerando as etapas até ao encontro final com a morte. Dona Ester, minha mãe, não gostava dessa conversa – que era rara paredes dentro. Ela acreditava que bastava nascer e envelhecer no Minho para que a vida tivesse sentido. De alguma maneira tinha razão; o Minho tem prolongado a minha vida, que seria desperdiçada no meio do ruído da cidade. Fala-se demais, lá. Eu, que leio os jornais antes das dez da manhã, que oiço as notícias da rádio às sete (juntamente com as informações sobre o trânsito em Lisboa ou no Porto), e que assisto com um desinteresse solene e discreto aos telejornais, acabo o dia a pedir um pouco de silêncio, um pouco de recato e de afastamento.
A minha sobrinha Maria Luísa acha que isto é melancolia do Outono. Ela acha que mesmo as grandes meditações sobre a vida em geral dependem de coisas tão vulgares como a queda das folhas dos plátanos ou o desarmar das barracas de praia no areal de Moledo. Explico pacientemente que o grande Outono sou eu mesmo, mas o argumento não convence. E então penso que as coisas estão certas – e que esse traço de juventude a mantém perfeita na sua ingenuidade.
in Domingo - Correio da Manha - 28 Setembro 2008
O velho Doutor Homem, meu pai, habituado – pela sua profissão de advogado – a escutar queixas e a ouvi-las com respeito (ou perderia a clientela), desvalorizava as suas próprias queixas, menosprezando achaques e avarias no seu sistema hepático. Ele dizia que, ao contrário do que se pensava, se envelhecia com mais dignidade se poupássemos nas queixas porque o rio do mundo corre quase na mesma direcção. A lição do estóico – ou do epicurista – tem a ver com a contemplação desse rio, enumerando as etapas até ao encontro final com a morte. Dona Ester, minha mãe, não gostava dessa conversa – que era rara paredes dentro. Ela acreditava que bastava nascer e envelhecer no Minho para que a vida tivesse sentido. De alguma maneira tinha razão; o Minho tem prolongado a minha vida, que seria desperdiçada no meio do ruído da cidade. Fala-se demais, lá. Eu, que leio os jornais antes das dez da manhã, que oiço as notícias da rádio às sete (juntamente com as informações sobre o trânsito em Lisboa ou no Porto), e que assisto com um desinteresse solene e discreto aos telejornais, acabo o dia a pedir um pouco de silêncio, um pouco de recato e de afastamento.
A minha sobrinha Maria Luísa acha que isto é melancolia do Outono. Ela acha que mesmo as grandes meditações sobre a vida em geral dependem de coisas tão vulgares como a queda das folhas dos plátanos ou o desarmar das barracas de praia no areal de Moledo. Explico pacientemente que o grande Outono sou eu mesmo, mas o argumento não convence. E então penso que as coisas estão certas – e que esse traço de juventude a mantém perfeita na sua ingenuidade.
in Domingo - Correio da Manha - 28 Setembro 2008
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