Economia política
O velho Doutor Homem, meu pai, desconfiava do capitalismo – mas menos do que o dr. Salazar, que atribuía ao mundo moderno todos os defeitos que conhecia (o seu conhecimento do mundo, aliás, era estreito, conquanto fosse literariamente sóbrio). Educado no catolicismo piedoso de antanho, habituei-me a ser sensível à legião de pobres que vivia no meu país nesses anos – e que hoje se chamam "desfavorecidos" –, atribuindo uma responsabilidade repartida aos ricos, às condições gerais da existência e à falta de educação.
É preciso dizer-se (caso o leitor tenha andado distraído) que na família nunca fomos propriamente liberais nessa matéria. Alguma coisa devia sobrar para os governos providenciarem, depois de se retirarem de onde não deviam estar. A Tia Benedita achava que os constitucionalistas (ela imaginava-os sempre à luz mortiça do São Carlos, vestidos de casaca e com a testa perlada de gotas de suor, negociando lugares e prebendas), primeiro, a República, depois, e a Carbonária e o bolchevismo finalmente, se tinham esforçado por criar pobres em abundância. A pobre senhora imaginava um mundo libertado pela Vilafrancada, coroado pelas cores da bandeira do senhor Dom Miguel, que tinha sido varado pelas esquerdas do mundo todo. Deus a conserve na sua companhia.
Esse mundo de especulação, gritaria nas bolsas, riscos financeiros e investimentos incertos, teve no meu avô – administrador de quintas no Douro – um adversário à altura. Não que ele desconfiasse "da economia"; não podia. Nem da moderna ciência da contabilidade. Nos seus livros, as pautas do "deve" e do "haver" deviam equilibrar-se com moderação, mas sem vergonha do lucro. Investimentos só deviam fazer-se quando as colheitas (e as vindimas, claro está) estivesse asseguradas, com o argumento de que não se deviam empenhar aos bancos os bagos futuros. Esta visão dos socalcos do Douro como garantias bancárias sempre o poupou a dissabores.
Mas o mal do capitalismo, dizia o velho Doutor Homem, era a ideia de que haveria dinheiro a rodos – e para todos. Não há. Não houve. Tendo sido um dos primeiros mestres de direito bancário em Portugal, ele sabia que o dinheiro era um bem caro e perverso, porque alimentava a cobiça que não podia realizar-se por si mesma, com trabalho, morigeração, poupança e honra. Os tempos são outros, agora – mas os resultados são os previstos, dando razão ao meu pai, esse mestre de economia política da velha Foz.
in Domingo - Correio da Manhã - 21 Setembro 2008
É preciso dizer-se (caso o leitor tenha andado distraído) que na família nunca fomos propriamente liberais nessa matéria. Alguma coisa devia sobrar para os governos providenciarem, depois de se retirarem de onde não deviam estar. A Tia Benedita achava que os constitucionalistas (ela imaginava-os sempre à luz mortiça do São Carlos, vestidos de casaca e com a testa perlada de gotas de suor, negociando lugares e prebendas), primeiro, a República, depois, e a Carbonária e o bolchevismo finalmente, se tinham esforçado por criar pobres em abundância. A pobre senhora imaginava um mundo libertado pela Vilafrancada, coroado pelas cores da bandeira do senhor Dom Miguel, que tinha sido varado pelas esquerdas do mundo todo. Deus a conserve na sua companhia.
Esse mundo de especulação, gritaria nas bolsas, riscos financeiros e investimentos incertos, teve no meu avô – administrador de quintas no Douro – um adversário à altura. Não que ele desconfiasse "da economia"; não podia. Nem da moderna ciência da contabilidade. Nos seus livros, as pautas do "deve" e do "haver" deviam equilibrar-se com moderação, mas sem vergonha do lucro. Investimentos só deviam fazer-se quando as colheitas (e as vindimas, claro está) estivesse asseguradas, com o argumento de que não se deviam empenhar aos bancos os bagos futuros. Esta visão dos socalcos do Douro como garantias bancárias sempre o poupou a dissabores.
Mas o mal do capitalismo, dizia o velho Doutor Homem, era a ideia de que haveria dinheiro a rodos – e para todos. Não há. Não houve. Tendo sido um dos primeiros mestres de direito bancário em Portugal, ele sabia que o dinheiro era um bem caro e perverso, porque alimentava a cobiça que não podia realizar-se por si mesma, com trabalho, morigeração, poupança e honra. Os tempos são outros, agora – mas os resultados são os previstos, dando razão ao meu pai, esse mestre de economia política da velha Foz.
in Domingo - Correio da Manhã - 21 Setembro 2008
<< Home